Celia Brandão, Psicóloga

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Supervisionando a transferência e a contratransferência

Um fenômeno comum em supervisões clínicas, é o fato de o analista omitir interpretações de conteúdos, dos quais demonstra ter tido uma percepção ou, quem sabe, algumas vezes, um entendimento intelectual da dinâmica dos conflitos apresentados pelo paciente. Este fato costuma ser comum em analistas principiantes receosos em relação às críticas ao seu trabalho. No entanto, já não ocorre apenas com principiantes mas também com aqueles habituados à supervisão e que se sentem plenamente à vontade com seu supervisor. Analiso que não se trata de uma resistência à supervisão que, na maior parte das vezes, é realizada com supervisor de sua afinidade e escolha. A dificuldade se opera na esfera do trabalho clínico a que se dedicam com grande motivação e seriedade, porém, não com muita liberdade.

 

Observamos também que nem toda contratransferência decorre específicamente da transferência do paciente. Há casos em que apesar do analista apresentar uma boa compreensão empática da dinâmica dos conflitos apresentados pelo cliente, apresenta bloqueio na interação emocional com seu paciente. Seria redundante dizer que a personalidade do analista subjaz às suas identificações e que, portanto, pode ser determinante do contexto transferencial.

A contratransferência é aqui entendida como uma qualidade emocional imprimida pelas disposições do self do analista ao contexto analítico e não como mera resposta à transferência de seu cliente. Michael Fordham propõe o conceito de deintegração (Fordham, 1969) para o entendimento do desenvolvimento da psique. O self para o autor é um integrado de potencialidades arquetípicas organizadas em uma unidade psique-soma (self- primário), que a partir da relação com o ambiente se diferenciarão como partes do ego.

Esse conceito é ampliado, pelo autor, para o entendimento da contratransferência, através dos conceitos de identificação projetiva e introjetiva, conceitos psicanalíticos, que na releitura de Fordham passam a ser entendidos como mecanismos de defesa do self e não do ego.

Nesse referencial, um bloqueio na exposição verbal do analista, seria visto como uma disposição do self do analista na análise e não apenas como resposta a um determinado contexto transferencial. Essa formulação opõe -se ao conceito de neurose de transferência Freudiano (Freud, 1923), que se refere a uma concentração de todos os sintomas e comportamentos do paciente na figura do analista e entende que a neurose de transferência coordena os vários sintomas e fantasmas neuróticos do cliente em torno da situação da análise. Para Freud o modelo seguiria a seguinte matriz no tratamento: a neurose clínica transforma-se em neurose de transferência, que por sua vez, dá acesso à neurose infantil pelo analista. Nesse modelo, a contratransferência seria resposta atual do analista à transferência do cliente.

A contratransferência na perspectiva de Fordham, está também relacionada à personalidade do analista e pode ser determinada por ela. Um deintegrado do self do analista, a partir de um processo de identificação do analista com os conteúdos trazidos pelo cliente na análise, se expressa na forma de identificações projetivas e introjetivas, mais ou menos sintônicas, mais ou menos ilusórias, definindo a qualidade da contratransferência. Nessa perspectiva, entendo que a auto-estima do analista deve ser objeto de análise na pesquisa e supervisão da contratransferência.

A obra de Kohut, debruça -se sobre o tema do narcisismo e da busca onipotente do “self nuclear”, self grandioso, presente nas transferências especulares e idealizadoras. A partir da supervisão de casos clínicos, pude observar bloqueios na atuação dos analistas que se acentuavam frente a pacientes que desenvolviam intensas transferências especulares e idealizadoras.

A identificação do analista com a busca onipotente do self do paciente, manifestava-se como uma auto-crítica exagerada, que não lhe permitia falhas no discurso ou em suas intenções analíticas. O analista está identificado com a ameaça de que o vínculo só será preservado mediante o total atendimento às solicitações do seu cliente.

Não pode se constituir para o cliente um mediador empático na elaboração de suas idealizações, na medida em que se encontra imerso nas suas próprias idealizações do lugar de analista. Acredito ser essa experiência muito comum aos analistas ao atenderem colegas de profissão em análise. A identificação com a demanda onipotente do self, por parte do analista, pode se manifestar também na forma de sentimentos de inutilidade, principalmente na interação com pacientes que apresentem acentuadas feridas narcísicas.

A não confirmação explícita, por parte do paciente, de sua atuação, pode ser vivida como um atestado de sua incompetência ou como ameaça de fracasso da análise. Embora paradoxal, o analista identificado com seu “self-grandioso”, termo de Kohut, que veicula sua ferida narcísica, muitas vezes se vê optar pelo fracasso da análise, omitindo suas percepções para evadir-se do confronto com a própria desidealização.

Outros conteúdos contratransferenciais aparecem associados à ferida narcísica do analista, tomado por sentimentos de grandiosidade ou de menos valia. Um conteúdo muito comum é o da identificação com o agressor, vivido na pessoa do paciente. O analista se sente alvo da rejeição e da desaprovação de seu paciente e apresenta dificuldade em levar em consideração as críticas a ele feitas e vê-las como uma possibilidade de espelhamento de sua conduta analítica. Uma forma de se defender do sentimento de menos valia é fazer uma forma de aliança inconsciente com os sentimentos de seu paciente, que não consiste desta feita em uma empatia genuína mas sim em uma permeabilidade indiscriminada que, como nos alertou Jung, pode levar à perda de seus referenciais como analista. O exibicionismo narcisista subjaz a uma conduta do analista que se vê como dono da verdade, e se manifesta algumas vezes, como um discurso em que assume uma atitude moralizadora em relação à conduta de seu paciente, não deixando espaço para discordâncias e se apresentando dissociado da emoção de seu cliente.

O mergulho na própria ferida narcísica é o caminho a ser percorrido pelo analista na busca de uma comunicação com a psique de seu paciente. Segundo Jung (Jung, 1986, p.213) há uma finalidade no ser humano em sua trajetória de individuação, de retorno ao abrigo materno e paterno, que simbolicamente poderia ser entendido como “penetrar na mãe e nela renascer”. A base do desejo incestuoso seria a busca da transformação psíquica. Incesto é aqui entendido segundo sua origem etimológica, ou seja, o estar ou o ser contido.

Cito Jung:

Enquanto a criança permanece nesta identidade inconsciente com a mãe, continua integrada na alma animal e tão inconsciente quanto está. O desenvolvimento da consciência leva inevitávelmente não só à distinção em relação à mãe, mas também em relação aos pais e à família em geral, e a uma relativa separação do inconsciente e do mundo instintivo. Mas a nostalgia deste mundo perdido continua e sempre nos acena quando surgem necessidades de adaptação difíceis, de desvios e recuos, de regressão para os tempos de infância, o que produz então a simbólica incestuosa.” ( Jung, 1986, p. 225 )

 

Jung nos fala do apelo do inconsciente por um eterno retorno, e salienta que o homem não pode se transformar exclusivamente pela intenção de sua vontade racional mas apenas a partir do que já está em potencial dentro dele. O narcisismo e o desejo incestuoso na psicologia junguiana são parte do processo de individuação e não se referem a mecanismos exclusivamente neuróticos. O analista como intermediário da transformação, operada durante o processo analítico, é convidado a uma identidade inconsciente com seu paciente, identidade esta que veicula o processo de individuação de ambos, analista e cliente.

O self como totalidade psíquica não pode ser percebido, a não ser parcialmente através da atividade simbólica do inconsciente. E, portanto, o analista não tem acesso direto à psique do paciente, a não ser mediado pela atividade simbólica, motor do processo de individuação de ambos.

A resistência ao processo presente na contratransferência expressa também o medo da experiência de fusão ou de mergulho no inconsciente, o medo de ser tragado pelo inconsciente. O paciente tenta reproduzir com o analista a experiência de fusão com o inconsciente das fases precoces do seu desenvolvimento. É através dessa experiência de fusão e da ameaça de destruição frente às necessidades afetivas, que se constrói o nosso sentido de segurança e de identidade.

Portanto, sentir-se cuidado contribui também para a construção da auto-estima e da identidade. O medo de se perder em relação às próprias idealizações, configura no analista uma falta de espontaneidade na expressão de seus sentimentos e percepções. As sínteses operadas pelas interpretações precoces escondem o medo da ambigüidade presente nos momentos de fusão e de indiscriminação.

No processo analítico, é preciso permitir a fusão, a vivência do que ainda não foi nomeado pela consciência, para depois poder discriminar e compreender.

Nas transferências idealizadoras as interpretações do analista podem apenas se limitar a acentuar a idealização, sendo que, na medida em que o analista vai ao ponto, mais o paciente o idealiza como o portador do conhecimento sobre sua psique e da cura. Instrumentalizar suas emoções e reações de contratransferência seria compreender baseado numa atitude empática em relação às demandas do self de seu paciente, ao contrário de assumir apenas uma atitude explicativa do processo. O self grandioso do analista apresenta-se como uma atitude defensiva, uma esteriotipia de papel, que oculta o vazio, o lugar abandonado, o lugar central do self na psique. Esse vazio é preenchido por um falso self como analista, uma presença imaginária de um ser ideal, que nunca se entrega, que nunca se realiza, como ocorre em uma paixão impossível.

O medo da vivência de vazio e da própria ameaça de dissociação acompanham o analista tomado por sentimentos de grandiosidade. Fordham comenta que “inseparável da persona do médico está a sua rotina e o seu hábito de saber de antemão”(Fordham, 1933, p. 127) e acrescenta que Jung já havia apontado para os estados de inconsciência mútua entre analista e cliente na análise, o que tornaria impossível uma compreensão do processo sem um mergulho por parte do analista em sua emoção. Esse fato não coloca analista e cliente em total simetria, na medida em que o analista possui formação advinda de seu treinamento e de sua análise pessoal, e que a análise se centra em material trazido pelo paciente sobre seus conflitos, estando, então, o cliente mais focado em si mesmo, enquanto o analista tem condições de avaliação bem mais amplas do que só através do material advindo de sua comunicação inconsciente com seu cliente.

O método analítico se constitui na apreciação seletiva do material simbólico presente na comunicação entre analista e cliente, sendo a técnica permeada das necessidades, motivações e fantasias do analista. O que se propõe é uma consideração constante do analista à estrutura do material trazido pelo cliente e às solicitações do mesmo, a que devem se reportar os desejos, fantasias e conhecimento teórico do analista. Esta proposta não exclui o fato de que, muitas vezes, elementos irracionais da psique do analista possam ser instrumento de análise, captando através de uma comunicação inconsciente através de identificações projetivas e introjetivas, conflitos a serem trabalhados com o paciente, antes mesmo que esse conteúdo possa ter sido clareado , a partir de seu referencial teórico.

O advento da subjetividade do analista como instrumento da  técnica na análise nos coloca diante da necessidade de uma reflexão constante sobre a participação do desejo do analista na construção do método. Tentei aqui citar um aspecto da auto-estima do analista que é o seu desejo de saber. A busca de sentido pelo analista, durante o processo analítico, reproduz a díade simbólica mãe/bebê nas suas várias formas de manifestação, em que o corpo do analista atua como continente daquilo que, embora não nomeado, é portador de sentido. O corpo do analista se constitui na análise como uma caixa de ressonância para as emoções do cliente mais ou menos conscientes e que, quando dissociadas, permanecem na esfera somática podendo ser experimentadas como sensações físicas também pelo analista. O acesso do analista a suas sensações na contratransferência é relativo à sua capacidade de viver a fusão e a separação, de poder estar junto e, no instante seguinte, estar separado, poder estar sozinho, embora acompanhado, possibilitando-se assim a observação de seus afetos e emoções que ainda não nomeados, podem ser compreendidos empàticamente. A observação empática do analista permite a existência ao analisando que adquire um espaço de auto- reflexão, deixando de eleger seu analista como a única fonte de alimento para a cura de seus males, ou seja, como complemento narcísico de seus anseios.

A identificação com o divino e o desprezo pelos limites de nossa natureza, são o substrato de nossas idealizações que no contexto da análise, impedem ao analista os espaços contemplativos de silêncio entre um pensamento e outro e o mergulho criativo no inconsciente.

 

 

 

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