Celia Brandão, Psicóloga

Artigos

Separação como um rito de passagem

A transformação social do amor.

 

 Desde o primeiro instante de nossa vida, trazemos conosco os conflitos entre união e separação, completude e incompletude, segurança e liberdade, vida e morte.

 Vivemos várias separações durante a vida: interrupções de relacionamentos ocasionadas pela morte física ou por amores acabados e, obviamente, a perspectiva da inevitável separação da própria vida pela morte física. Segundo o psicanalista Igor Caruso, ”Nascer já e morte e amar já e separação”. (Caruso,1981, p.285).

 Focamos aqui o luto pela perda do objeto de amor, a separação dos amantes, vivência de morte decorrente do fim de um relacionamento, tema de vários poemas, canções, romances. Juntos ou separados, diria que o que importa é a qualidade do vínculo enquanto durou a vida em comum cujos reflexos permanecem após a separação.

O tema da separação dos amantes pressupõe uma reflexão sobre a transformação social do amor como potência simbólica que acompanha a história da sociedade humana.

Na Antiguidade Platão professava o amor ideal que estava isento do desejo carnal e dos prazeres mais simples do homem. Por ele eram contempladas as noções de belo, de verdade e de virtude. Ao belo, no vocabulário Platônico corresponde o ideal de perfeição e excelência e amar pressuporia a busca pela completude no outro e a busca da verdade.

Na Idade Média, o amor era ainda idealizado e as dissociações entre mente e corpo, sagrado e profano, identidade e amor fundavam as bases de relacionamentos baseados em acordos de interesses entre famílias. O casamento era sacramentado em uma estrutura de bases feudais, em que a mulher passava da condição de propriedade da família e de seu pai para a reclusão no vínculo indissolúvel do matrimônio católico sob a autoridade do marido. A mulher que não correspondesse às expectativas dos papéis sociais a ela designados de submissão ao marido era devolvida ao pai ou senhor feudal. As figuras do senhor feudal, do esposo e do divino, articulavam-se de forma tão estreita que se fundiam na consciência coletiva.

É evidente, portanto, que a história do amor acompanha a história da família e da transformação da vida em comum. Em seus primórdios, a manutenção da estrutura familiar exercia-se pelo princípio de linhagem que se definia pela solidariedade entre descendentes de um mesmo ancestral. E, desde então, seguiu um longo caminho até a consolidação da família nuclear moderna e as novas formas de vida conjugal emergentes na pós-modernidade até a contemporaneidade. Até o século X,  na relação conjugal  cada um tinha  a posse e o controle de sua herança material.

 

 ”(…) ainda não estavam fundidos em uma massa comum administrada pelo marido: (..) nesse século, o marido e a mulher geriam cada um seus bens hereditários, compravam e vendiam separadamente, sem que o outro cônjuge pudesse interferir”.  (Ariés,1981, p.144)

 

Essa forma de funcionamento visava a preservação da família tradicional, mantendo o poder do fundador ou do ancestral durante o maior tempo possível e “deu origem às teorias tradicionalistas do século XIX sobre a grande família patriarcal” (Ariés, 1981, p.143).

Já no século XVII, a intimidade entre os gêneros sofre transformações, não só a partir da “dilatação ou contração dos laços de sangue” (Duby em Ariés, 1981, p. 145) mas também nos papéis exercidos pelo homem e pela mulher na colaboração familiar e na forma de convivência e de intimidade. Até então, a família foi considerada e “colocada no mesmo plano que Deus e que o Rei” (Ariés,1981, p.141). Essa divinização se dava como persistência de um valor antigo, que pretendia configurar a família de forma regimentar, em alinhamento com a moral religiosa que preconizava a dissociação entre sexo e amor.

No decorrer de um processo secular, o ambiente familiar irá se firmar cada vez mais como possuidor de uma dinâmica própria, que substitui progressivamente o “ de fora para dentro”, da imposição religiosa, pelo “de dentro para fora, a família reconhecida como organismo vivo, criador de valores próprios.

As dissociações no ideário coletivo do período Iluminista, movimento intelectual do século XVIII, se deveram à primazia conferida à racionalidade crítica o que implicava recusa a todas as formas de dogmatismo, especialmente o das doutrinas políticas e religiosas, consequentemente também ao valor das paixões na construção dos vínculos.

A partir da industrialização o estado começa a assumir funções que eram da família. Ao mesmo tempo a psicanalise nos séculos XIX e XX contribui com as bases da família moderna que “sanciona a reciprocidade dos sentimentos e os desejos carnais por intermédio do casamento” (Roudinesco, 2003, p. 19).

Nos anos 60, a inserção da mulher no mercado de trabalho e a sua conquista de maior autonomia, facilitaram a mobilidade das relações. O “até que a morte nos separe”, preconizado pela igreja católica, cedeu lugar ao “que seja infinito enquanto dure” do poema de Vinicius de Moraes, opondo-se à ideia de que o tempo curto de relacionamento apontasse necessariamente à uma fugacidade e superficialidade do vínculo. O relacionamento amoroso já não encarnava precisamente o símbolo da estabilidade e a união passa a ser embasada no desejo, no afeto e na escolha. Já nos anos 70 o conflito entre o compromisso conjugal e a autonomia, acompanhava a tentativa de adaptação a novas formas de parceria. No Brasil, já não se protelava mais a iniciativa de se separar como antes e essa mudança se refletiu na música de Chico Buarque

 

Trocando em Miúdos

                          Chico Buarque 1978

 

“Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim, não me valeu

Mas fico com o disco do Pixinguinha sim, o resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar

As sobras de tudo que já não há

As sobras de tudo que fomos nós

As marcas do amor nos nossos lençóis

 

Se no século XIX optava-se pela manutenção do vínculo conjugal e da família, visando a preservação do patrimônio e da segurança em detrimento da identidade e da liberdade individual, no século XXI arriscamos uma certa segurança em prol da liberdade individual. Passaram a ser reconhecidas juridicamente várias possibilidades de vida a dois, diferentes acordos conjugais em que se permitem maiores ou menores liberdades mútuas.  Surgem na contemporaneidade as famílias poli afetivas e outras modalidades de convivência e o afeto passou a ter um valor também no plano do direito.

 Em 2002/2003 o código civil art/593 reconheceu que o parentesco pode ser natural, civil ou de outra natureza. Surge o reconhecimento da paternidade sócio afetiva, como critério para estabelecimento de guarda dos filhos em uma separação. É possível também o reconhecimento legal da multiparentalidade em relações homo afetivas mesmo que não haja convivência sócio afetiva de todos os envolvidos.

Na virada do milênio o sociólogo Zigmunt Baumann(Bauman, 2004) analisava que o amor na contemporaneidade estava incluído nos mecanismos da sociedade de consumo. A relação amorosa na pós-modernidade estaria marcada pela realização impulsiva do desejo em prejuízo da qualidade do investimento amoroso. O anseio por satisfação imediata transformaria a troca emocional, o amor e desejo, em consumo impulsivo das relações, em uma espécie de orgia consumista. Nesse contexto, estaria excluído da vivência dos amantes o tempo ritual que há ao se caminhar do desejo ao amor que envolve a aceitação do tempo e espaço do outro, assim como muita generosidade e tolerância.

 

“Assim não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória – inexistente, embora ardentemente desejada – de evitar suas garras e ficar fora do caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão – mas não se tem a mínima ideia de quando isso acontecerá” (Baumann, 2004, p.17.)

 

Após dez anos, Baumann usa o termo interregno para se referir ao momento atual, um tempo entreo que não existe mais e o que não existe ainda. Vivemos uma época de incerteza e insegurança social, de perda de confiança no Estado e nas instituições para resolver questões relativas ‘a dignidade e bem-estar humano.

Diante da complexidade das relações, observa-se de um lado, um anseio por recuperar a segurança do passado buscando resolver questões da esfera afetiva através de um enquadre legal, e, de outro lado, ao mesmo tempo manter a autonomia dos indivíduos. Segundo o filosofo Pascal Bruckner, o desafio feito, hoje, a homens e mulheres é “amar apaixonadamente, se possível ser amado do mesmo jeito, mas permanecendo autônomo” (Bruckner, 2013, p. 35-36). Viver a dois na contemporaneidade não deve ser uma luta de resistência ou um teste dos próprios limites. Admite-se que o valor de uma relação não se dá por sua duração maior ou menor ou pelo tipo de contrato feito. Relações breves e intensas podem operar transformações profundas e deixar registros cheios de significado, enquanto algumas relações de longos anos se veem minguar na insatisfação mútua e na ausência de criatividade.

 

Verifica-se que na polaridade ardor do desejo e durabilidade do amor há quem prefira menos paixão e mais duração e há quem prefira a incandescência das paixões fugazes e intensas. Ainda assim, ambos, desejo e amor, estariam ameaçados de sucumbir a uma grande idealização e imediatismo, se almejarmos a própria salvação através de nossas relações amorosas e elegermos o outro como único responsável por nossas alegrias e tristezas, nos afastando da dimensão trágica da própria trajetória.

 

Eros é uma relação com a alteridade, com o mistério, ou seja, com o futuro, com o que está ausente do mundo que contém tudo o que é. O Pathos do amor consiste na intransponível dualidade dos seres ( Baumann cita Levinas, 2003, p.22).

 

A banalização e falta de acolhimento social às perdas e fracassos tem se intensificado em uma sociedade onde predomina a incerteza e um imediatismo reativo à imposição feita ao sujeito de ser feliz. Da espiral da busca do sucesso e satisfação imediatos surge hoje uma demanda de resgate de alguns valores, através da legitimação do afeto ao se tomar decisões na esfera dos direitos civis e da família.  Enfoco a experiência da separação dos amantes como um rito arquetípico de passagem, um lugar nesse mundo diverso para a dor e depressão decorrentes de uma separação e um espaço de resgate de valores fundamentais ao processo de individuação.

 

 

 

      A experiência arquetípica da separação.

                             

 

A experiência arquetípica da separação acena com a ameaça da morte em vida desde os primeiros momentos de nossas vidas. O bebê que se separa, mesmo que por instantes, da mãe, pode viver essa ausência quase como se fosse uma perda definitiva. Não distingue, no sentido simbólico, separação definitiva da morte em si. O que não está mais na sua presença está ausente do mundo. A agonia primitiva de perda também pode ser vivida pelo bebê como ameaça de aniquilamento do self dado que ainda não tem construida uma imagem interna do eu. A primeira consciência de separação é a ausência temporária da mãe ou do cuidador. Como se o amor e a morte se entrelaçassem no self em seu caráter inexorável e arquetípico. O amor que une é o mesmo que separa, nos separamos da mesma forma que um dia nos unimos.

Em um processo de separação, na vida adulta, angústias primárias retornam à consciência. O desejo de afastar o que nos causa o sofrimento, ou de fazer-se distanciar, é confundido com o simples decretar da morte do outro. A negação da dor e do conflito transforma a situação de perda em triunfo, nos casos em que quem se separa tenta anular de imediato na consciência a percepção da falta, simulando uma experiência precoce de auto superação.

É próprio à vivência de uma separação sentimentos ambivalentes. De um lado a aceitação da perda e, de outro, o anseio compensatório de completude e de fusão com o objeto de amor. A negação do conflito é uma violência cometida pelo sujeito contra si mesmo e contra o outro de quem se separa.

Quando uma vida se extingue, um relacionamento se interrompe, a única presença possivel é a da falta, que, por sua vez, se faz representar na lembrança de uma presença. Na elaboração de uma perda amorosa é preciso restituir à consciência a parte que se foi com a separação, que se foi com o outro, e trazer de volta a integridade do eu.

 

 “Apesar de que eu ainda vivo em meu corpo, sou um cadáver no outro, naquele ser que me amou e a quem amei. O esquecimento é, portanto, a primeira e grande defesa contra a própria morte. Mas significa também um homicidio em nome da vida e o suicídio da consciência”. (Caruso Igor,1981, p.20)

 

Em uma separação, as polaridades do bem e do mal se aproximam na tentativa de reconstrução de uma imagem preservada do eu, do outro e da relação. Instala-se um período de ambivalência: luta entre os sentimentos de frustração e o de alívio pelo término da relação.  Sentimentos contrários podem ser vividos de forma integrada através do mergulho emocional na dor, ou de forma dissociada e eufórica, ou ainda, melancólica, em que o enlutado se funde com o que morreu.

A dificuldade de viver o luto, a falta de acolhimento social ao sofrimento aponta para um movimento de negação e para a intenção do sujeito de desfazer precocemente o registro da perda na consciência e manter sua autoestima. Na contemporaneidade tem se confundido autoestima com adulações narcísicas e com a rápida adaptação às circunstâncias e os ritos de aproximação e afastamento necessários à intimidade são tragados pela busca de afirmação imediata do prazer e negação da dor. Desse fato, observa-se uma tendência a se tenta resolver no plano jurídico conflitos que deveriam ser resolvidos no âmbito da psicologia e da psicanálise.

O término de um relacionamento conjugal, principalmente quando se é deixado, pode ser vivido como um fracasso pessoal e, portanto, gera insegurança, baixa autoestima e medo de novas rejeições. De outro lado, ao solicitar a separação, no caso de situações limite onde ocorreu abandono e desrespeito ao cônjuge, mulheres alteram seu depoimento conforme sua intenção ao abrir o processo judicial: de manter ou não o casamento. Muitas retroagem da queixa antes de se consumar o divórcio como demonstra a pesquisa de Wânia Izumino (Izumino, 2004). Esses fatos demonstram que o sujeito que se separa compartilha de uma mesma consciência coletiva e tende a julgar- se mesmo quando o restante da sociedade o ignora. Neste caso, ele próprio exercita o julgamento que espera dela, em uma situação de solidão que acentua a angústia de morte vivida na separação. Daí a importância de se incluir a categoria de gênero e as relações de poder entre os gêneros ao se lidar com conflitos conjugais.

 Se no ideário do modelo patriarcal de união, a separação poderia se acompanhar de sentimento de culpa e ser vivida como um castigo que recaía sobre a desmedida nas relações amorosas supostamente marcadas por um apetite de prazer descontrolado, na contemporaneidade, vivemos o conflito entre a ”emancipação que liberta e ao mesmo tempo oprime” (Bruckner, 2013, p. 103). Caíram alguns tabus como, por exemplo, o da passividade da mulher mas se instalaram outras injunções que ao contrário de fortalecer limites, incentivam a fuga à tarefa de conjugar interesses e papéis individuais a favor da sobrevivência do vínculo. Onde não há lugar para o fracasso é incentivada a rápida reinvenção de si mesmo ou negação do conflito como forma instantânea de superação. Pesquisas mostram que estamos nos separando mais judicialmente.

Levantamento realizado pelo IBGE verificou que:

 

O número de divórcios no país cresceu mais de 160% na última década. Dados da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2014, indicam que, no ano de 2013, foram homologados 341,1 mil divórcios, um salto significativo em relação a 2004, quando foram registrados 130,5 mil divórcios.

 [..] Nas últimas três décadas (de 1984 a 2014), o número de divórcios cresceu de 30,8 mil para 341,1mil.

 

  Na avaliação do IBGE, a elevação sucessiva, ao longo dos anos, do número de divórcios concedidos revela “uma gradual mudança de comportamento da sociedade brasileira, que passou a aceitá-lo com maior naturalidade e a acessar os serviços de Justiça de modo a formalizar as dissoluções dos casamentos”. (http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/divorcio-cresce-mais-de-160-em-uma-decada)E

Entendemos que a facilitação institucional do divórcio, o investimento pessoal requerido hoje à manutenção de um relacionamento estável e a falta de um lugar de acolhimento para a depressão e o luto tem contribuído para os números verificados na pesquisa.

 

 Separação como um rito de passagem

A par dos fatores sociais influentes no estabelecimento do vínculo conjugal na contemporaneidade, toda separação se configura como um rito de passagem e como um processo psicológico de transformação. Saliento o problema do sentimento de culpa na separação amorosa devido à constatação pelo sujeito do desaparecimento do próprio afeto. Na separação a dor é também se separar do próprio sentimento de amor que já não está mais presente. Se fazer acompanhar do desconsolo é adiar a vivência do vazio, driblando a dificuldade de se separar da própria dor da separação. A dor torna-se a única presença possível na solução melancólica dado que testemunha a existência anterior do afeto.

Quando caímos no luto estamos diante da perda de um objeto. A primeira vivência do luto é a constatação da ausência do outro em nossa vida. A ultrapassagem desse momento de ruptura pode não se dar completamente, e o enlutado refugia-se na tristeza, de tal forma, que se confunde e já não sabe o que perdeu. Se esse luto não se concretiza em um rito de separação, ocorrem a nostalgia e melancolia de quem sente ter perdido a si mesmo. O melancólico perdeu o próprio eu. Segundo Igor Caruso (1981) a separação de alguém a quem amamos é a presença da morte na consciência e da consciência em que a sentença de morte do outro pode significar decretar a morte de si próprio.                               

A constatação da morte do afeto que fora considerado indestrutível é o mote da melancolia vivida na separação. Valorizar o sentimento é diferente de idealizá-lo. Quanto mais idealizamos o casamento ou a união por amor menos toleramos seus impasses e os sentimentos negativos que são vividos de forma sombria e atuados na relação. Elaborar uma perda amorosa envolve níveis de renúncia e de generosidade através da integração de afetos contraditórios: amor, raiva, ressentimento, disputa, desejo de retaliação e outros. A manipulação do discurso nas sessões de análise ou nas audiências judiciais acompanha o conflito e o desejo inconsciente dos indivíduos e do casal. Quais sejam: tentativas de manter viva a relação e negação do conflito, medo da perda da identidade, sentimento de culpa e melancolia, renúncia verdadeira ou sacrifício.

   Reconstruir a narrativa da própria história e da história da relação possibilita a elaboração do luto. A linguagem poética, a literatura, constituem um lugar intermediário entre o imaginário e o real, entre o subjetivo e o objetivo, entre o desejo de escape e a necessidade de imergir no luto

Quando a separação se impõe pela morte de um dos cônjuges o ritual de luto apresenta-se da mesma forma como um espaço de transformação.

Norberto Lichtenstein publicou o livro 81 dias e 36 anos, livro póstumo à morte de sua mulher, Vivian, que morreu após ter passado 81 dias na UTI tentando combater uma infecção e com quem conviveu durante 36 anos. No livro percorre suas vivências e memórias desencadeadas durante esses oitenta e um dias de luta entre a esperança e a morte. Aqui não se tratava da morte do afeto mas da elaboração de uma separação imposta pela morte física. Ainda assim o enlutado se pergunta sobre o que deixou de fazer pela companheira quando ainda viva. No livro resgata a história também de sua vida e a história do amor dos dois. Lançou o livro e como sobraram exemplares divulgou em um grupo de talentos no Facebook que doaria um livro a quem quisesse ler. Foram inúmeros os interessados, mais mulheres que homens. Norberto começou uma espécie de peregrinação, colocou cada livro em um envelope que tinha sido colecionado por sua mulher e foi deixando em lugares combinados com cada interessado. Esse ritual de luto agregou pessoas ao seu redor, compartilhando de sua perda. A cada livro enviado, o enlutado se separa ainda e aos poucos de sua amada dizendo o adeus que não pode dizer em vida. O ritual de luto é também um auto resgate.

 

 Existe um jeito certo de encarar a vida? Claro que não! Cada pessoa decide o próprio caminho e principalmente, a maneira como enfrentar as alegrias e tristezas que acontecem com todo mundo. Ultimamente ando pensando na frase” deixa a vida me levar, vida leva eu. Penso em um jeito mais leve de enfrentar os problemas. O grande filósofo contemporâneo Serry Seinfeld disse em um episódio de seu tratado de filosofia (a série Seinfeld) que, quando você perde algo, logo a seguir as forças do universo trabalham para repor a perda. Não é sempre que ocorre isso mas pensar dessa forma nos torna menos infelizes. E não é isto que desejamos? Sermos felizes? O risco desta diretriz de vida é nos tornarmos acomodados esperando que as coisas boas caiam na nossa cabeça e as coisas ruins vão embora sozinhas. Como não consigo ficar parado no meu canto, estou adorando a idéia da vida me levar” mas usando uma vela no meu barquinho para direcionar a ventania no sentido dos meus sonhos (Lichtenstein, 2014, p. 25).

.

 

 

Na canção de Tunai e Sérgio Natureza, As Aparências Enganam, é eloquente o conflito de ambivalência entre amor e ódio, vida e morte, presentes no vínculo amoroso e na separação. É preciso viver e acolher os tempos de verão e de inverno das relações amorosas.  No outono das paixões o fogo e o gelo se irmanam e não há mais como se aquecer.  É preciso lidar com a ambivalência de sentimentos que ocorre em toda separação.

 

“As aparências enganam

Aos que odeiam e aos que amam

Porque o amor e o ódio

Se irmanam na fogueira das paixões

Os corações pegam fogo e depois

Não há nada que os apague

Se a combustão os persegue

 

As labaredas e as brasas são

O alimento, o veneno, o pão

O vinho seco, a recordação

Dos tempos idos de comunhão

Sonhos vividos de conviver

As aparências enganam

Aos que odeiam e aos que amam

 

Porque o amor e o ódio

Se irmanam na geleira das paixões

Os corações viram gelo e depois

Não há nada que os degele

Se a neve cobrindo a pele

Vai esfriando por dentro o ser

Não há mais forma de se aquecer

 

Não há mais tempo de se esquentar

Não há mais nada para se fazer

Senão chorar sob o cobertor

As aparências enganam

Aos que gelam e aos que inflamam

Porque o fogo e o gelo

Se irmanam no outono das paixões.

 

Os corações cortam lenha e depois

Se preparam para outro inverno

Mas o verão que os unira

Ainda vive e transpira ali

Nos corpos juntos, na lareira

Na reticente primavera

No insistente perfume de

Alguma coisa chamada amor”. ( Tunai e Sérgio Natureza)

 

 

A elaboração de uma separação passa por momentos de resgate e de destruição das memórias. A busca da sobrevivência do ego se dá através do assassinato simbólico do outro e até certo ponto constitui ameaça à integridade do próprio ego. A forma como se dá a separação marca a continuidade do processo de individuação de cada um dos cônjuges, comportando um sentido existencial.

      Cada separação reedita lutos anteriores. O medo da perda acumula lutos não elaborados. Será necessário integrar a ambivalência de sentimentos e as experiências passadas de perda. 

 

A angústia do amor é o temor de um luto que já ocorreu, desde a origem do amor, desde o momento em que fiquei encantado. Seria preciso que alguém pudesse me dizer: Não fique mais angustiado, você já o (a) perdeu (Barthes cita Winnicott ,1977

 

 

A música “Atrás da porta”, de Chico Buarque de Holanda, é eloqüente ao mostrar a ambivalência dos amantes entre a tentativa de manter vivo na consciência o que os faz sofrer, ou o imperativo da consciência de aceitar a separação e viver a morte do sentimento.

 Cito:

 

                   “ Dei pra maldizer o nosso lar

                      Pra sujar teu nome

                      E te humilhar

                      Pra me vingar a qualquer preço

                      Te adorando pelo avesso.

                      Só pra mostrar que ainda sou tua.

 

 

 

Os rituais instalados na elaboração da separação de um objeto de amor que está vivo, da mesma forma que os rituais de elaboração do luto por morte física do ser amado, visam à preservação do que está vivo mas auxiliam na separação do que morreu.

Carlos Machado (1999), antropólogo, relata que o impulso que leva os indivíduos ou coletividades a praticar os seus rituais funerários que têm, neste caso, como elemento central o corpo morto, aponta unicamente para o homem vivo, a sociedade dos vivos. O ritual da morte será, em definitivo, um ritual de vida. Garantir a boa ida ao companheiro é uma forma de preservar a paz dos que ficam.

Faz parte do rito de separação de casais, o vai-e-vem, o trazer e mandar embora, tentativas de manter o outro vivo na consciência até deixá-lo ir de vez. Pensar em alguém faz parte do processo de esquecer. Voltar àquele mesmo lugar, mandar uma carta, cantar a canção do encontro inicial, rever as fotos do relacionamento acompanham o processo de separação. Pequenos atos rituais, falas, gestos dirigidos ao ser amado, formam no seu conjunto sistemas que integram símbolos de elaboração da ruptura de um laço.

No luto por morte física, a prova de realidade é a ausência real que nos mostra que o objeto amado já não existe. No luto de separação entre vivos, em que o objeto não está nem morto, nem necessáriamente distante, sou eu quem delibero quando e como pelo seu desaparecimento em minha consciência. Esse processo é extremamente doloroso e conflitivo, seja na ferida de autoestima, em ter sido esquecido, ou na constatação de que o outro vive bem sem a minha presença, ou ainda no sentimento de culpa e responsabilidade envolvidos na perda, junto aos sentimentos de alívio e de falta.

 Na vivência melancólica, está presente o sentimento de culpa por não ter morrido junto com aquilo que morreu, ou com quem morreu ou por não ter sido suficientemente bom, ou ainda, não ter podido evitar a separação. A consciência se divide entre o sentimento de dever morrer com o objeto de amor, e o direito à vida. Para que se resolva o impasse melancólico será necessário diferenciar o morto do vivo e recuperar a memória e a dignidade dos bons e maus momentos.

Na separação, há dor também em se separar do próprio sentimento de amor e do sentimento de amor daquele que não está mais presente.               

Inês Pedrosa, autora portuguesa, no romance, “ Fazes-me Falta(2002 ), relata a história de um casal que viveu um romance sem concretizar a intimidade sexual. Se dá aqui o sentimento de separação precoce, de lhes ter sido roubada a convivência. Um dos narradores é a protagonista, uma professora que enveredou pela política e já morta e o outro um escritor bem mais velho. O livro percorre o diálogo entre os dois após a morte dela. Uma relação de puro afeto situada entre o amor, a paixão  e a amizade mas que não consuma a intimidade sexual. Entre perdas e danos, traições, desentendimentos e acertos o foco do romance é o amor em todas as suas formas: o amor erótico, o amor de dileção, o amor que é puro afeto e que tenta se manter vivo às custas da castração de aspectos da identidade dos protagonistas.

 

 

“Só vivendo sobre a mudança se podia evitar a dor, só contornando a monstruosa perfeição do tempo se podia vencê-lo. Assim pensava, e enganei-me, porque o tempo não é pensável. Concentrei-me em deixar de ser para poder ser tudo, em esquecer para dominar a existência.   Eu sou o tempo; sou nada, o nada veloz e imóvel que molda o corpo do tempo.  Deixar de ser é ainda acatar as regras implacáveis do ser”. (Inês Pedrosa, 2002, p. 90).

 

“Ensina-me uma dor que não passe, que possa fulgir no sulco das lágrimas quando as lágrimas tiverem secado, que possa deixar um lastro sobre a mesa em que a minha cabeça pousou, desesperada. Ensina-me a mansidão desse desespero onde fervem as alegrias passadas e futuras, o explendor do êxtase mortal. Ensina-me a tua morte, que em vida pude apenas surpreender ” (Inês Pedrosa, 2002, p. 90).

 

 Os amantes procuram um espaço ideal onde as polaridades amor e dor se neutralizem. O lançar-se na morte ou não concretizar plenamente a relação é uma das formas ficcionais de tornar o seu amor divino e indestrutível. Na mesma vertente, a tentativa de postergar o processo de separação e de manter a dor como presença possível, está retratada em muitas letras da música popular brasileira. Da mesma forma, está o desejo de “virar a mesa” e acreditar na possibilidade de transformação existente na dor.

A canção Mil Lágrimas descreve um ritual de mergulho na dor com destino à transformação e desenvolvimento psíquico.

 

Trecho de Mil Lágrimas

         Itamar Assunção e Alice Ruiz:

 

“A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de ser banal

Chorar for inevitável

Sinta o gosto do sal, do sal, do sal

Sinta o gosto do sal, gota a gota, uma a uma

Duas, três, dez, cem mil lágrimas, sinta o milagre

A cada mil lágrimas sai um milagre

 

 

 

A canção propõe um Solutio, um processo alquímico de mergulho emocional na dor como caminho da cura. A possibilidade de elaboração está nas lágrimas, no gosto de sal da dor. A separação é preparada pela angústia da consciência e continua gerando angústia na consciência. O milagre se dá mediante a recuperação do prazer e da auto-estima que se dá por um “milagre”: a superação da angústia.

Como disse Inês Pedrosa, não é possível escapar à imponderabilidade do tempo, das memórias e da própria história. Eros, fator de ligação, nos lança no desejo absoluto do ”Vou te amar para sempre”. Porém, a idéia do amor eterno supõe o ser eternamente uno e imutável.  A negação das próprias contradições e dos limites nos lança em um falso absoluto. O ego nos seus ideais de unidade, imortalidade e imobilidade luta contra a dimensão trágica do humano e a tarefa de autoconstrução. O imediatismo contemporâneo e falta de lugar para a dor psíquica ameaça retirar dos rituais de união e de separação amorosa o tempo de elaboração psíquica. Quando a expectativa e a espera são lesadas ou banidas perde-se o tempo e espaço rituais da elaboração dos afetos.

Entre perdas e danos, juntos ou separados, o que importa é a qualidade do vínculo enquanto durou a vida em comum e após a separação. Mas o inconsciente e o caráter subversivo do amor atravessam as convenções e injunções sociais pois não são domáveis e subvertem até processos judiciais. Na esfera jurídica, debate-se sobre a responsabilidade dos cônjuges na proteção da personalidade do companheiro e da família. Não há hoje unanimidade no Direito de Família quanto ao julgamento da responsabilidade nos casos de violação dos direitos individuais do outro cônjuge e da família: “vida, integridade física, honra, liberdade, identidade e privacidade, como por exemplo, nos casos de adultério ou de violência (Silva T. B. Beatriz, 2012, p.103).

          O desequilíbrio verificado em situações limite onde ocorreu abandono e desrespeito ao cônjuge durante e após a separação não se resolve apenas com a aplicação da lei ou com ajustes e indenizações pecuniárias aplicadas. Um diálogo entre Psicologia e Direito se faz necessário para a mediação da separação conjugal e a elaboração dos danos afetivos e morais advindos de uma separação.

O momento da separação deve ser abordado como um rito de passagem, oportunidade de revisão de vida em que os sentimentos sejam estes de perda, culpa, ameaça de auto aniquilamento, baixa autoestima, ressentimento, perda de identidade ou desejo de reparação são apenas fragmentos de uma historia que nas palavras da escritora Inês Pedrosa, servem “a essa obsessão de verdade a que chamamos amor.

 

 

 “Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio – nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência ” (Pedrosa, 202, contracapa)

 

 

 

 

Referências Bibliográficas:

 

BAUMANN ZIGMUNT. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Jorge Zahar Editora., Rio de Janeiro, 2004.

 

BRUCKNER PASCAL. Fracassou o casamento por amor? Difel: Rio de Janeiro, 2013.

 

CARUSO, A IGOR. A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte. Edição, 2. Editora Diadorim/Cortez, São Paulo, 1981.

 

FREUD S., Duelo e melancolia em OC.Tomo II, Ensaio XCIII, Editorial Biblioteca Nueva- Madrid, 1981.

 

IZUMINO, P. WÂNIA. Justiça e violência contra a mulher- o papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. 2ª-edição- Annablume: Fapesp,São Paulo, 2004.

 

JUNG, G JUNG Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Editora Vozes: Petrópolis- 2003

HOLANDA, C BUARQUE. DVD Romance. São Paulo, 2007.

 

LICHTENSTEIN, NORBERTO. 81 dias e 36 anos. 1.ed,Editora Ipsis, São Paulo, 2014.

MACHADO, A CARLOS. Cuidar dos Mortos, Instituto Sintra, Sintra-1999.

 

PEDROSA, INÊS. Fazes-me Falta. Publicações Don Quixote, Lisboa, 2002.

 

PESQUISA INTERNET (http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/divorcio-cresce-mais-de-160-em-uma-decada

 

SILVA, T. B. REGINA. Divórcio e Separação – após a ECN. 66/2010. Editora Saraiva, São Paulo, 2012.

 

1