Celia Brandão, Psicóloga

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Conflitos e transformações, a identidade do analista junguiano

Ao refletir sobre a questão da identidade do analista Junguiano retomo alguns autores da Psicologia Analítica e suas reflexões sobre o setting, no que se refere aos ingredientes de nossas escolhas e posturas como analistas junguianos, e acrescento alguns elementos de minha experiência clínica

Lambert (1981) aponta Eros como elemento de ligação e como diferencial para o uso e a aplicação do conhecimento científico e a administração do poder inerente às profissões de ajuda. Comenta a dissociação contida na idéia de que a inveja e o elemento agapaico sejam incompatíveis. A inveja está também contida no amor idealizado e inevitavelmente na relação entre analista e cliente.

Para Plaut (1994), assim como todo fenômeno transferencial, nossa identidade junguiana não pode ser pensada sem o fator de ligação presente em Eros. Porém, a identidade do analista não depende apenas de sua escolha e vontade. Carrega a aura da história e da cultura de um grupo.

Pensamos identidade como um processo de uniões e separações, que inclui conflitos, na busca de uma integração psíquica. Abrange elementos da personalidade do analista, sua bagagem de conhecimentos, suas raízes culturais, seus questionamentos e posicionamento ético.

O modelo de referência pode ser adotado como um rótulo, uma estereotipia de papel, em conflito com os anseios mais íntimos do analista, levando a dificuldades no manejo do casual, do aleatório, do novo. A identidade do eu se confronta com a identidade do grupo, diante da necessidade de pertencer a um grupo de reconhecimento.

Algumas condutas constituem formas de escape aos sentimentos de discordância, ambivalência, exclusão, desamparo, gerados pela constatação das contradições e diferenças:

– O analista assume, por vezes, atitude subserviente aos conceitos iniciais da teoria junguiana e se exime de uma postura reflexiva. Coloca-se como ideal narcísico de um pai ou mestre idealizado.

– Apresenta-se como o que renega os valores do grupo de referência na tentativa de diferenciar-se do coletivo idealizado.

– De outra feita, é o herdeiro de um legado que não deriva de suas escolhas, mas se confunde com um chamado divino.

– Dá primazia aos ideais de nobreza e sobriedade que se sobrepõem à autenticidade, permanecendo na posição do que sempre louva, evitando a discordância.

– A afirmação da identidade pode ser almejada negando a identidade do outro, de outras direções analíticas. (Plaut, 1994)

– Para escapar a conflitos, por vezes se mantém arraigado à necessidade de resgate de valores fundamentais, descrevendo seu papel como uma profissão de fé.

A visão fundamentalista da identidade do analista pode resultar no desprezo aos fatores de transformação presentes na sombra individual e coletiva.

A identidade junguiana tem sofrido transformação que passa pela história individual e pela tradição cultural. Pensamos essa identidade como expressão de valores éticos, que se transformam e têm ancoragem na consciência individual, no inconsciente coletivo e na consciência coletiva.

Neumann (1991) comenta “os valores da velha ética ocidental”, que têm como pano de fundo a dissociação entre o bem e o mal, a ênfase dada aos ideais de belo e de bom, do santo e do sábio, do nobre e do herói ou do sóbrio, presentes na persona do analista. A negação das contradições, do negativo, das diferenças, promove a dissociação psíquica e a inflação do ego. Como acontece em todo processo de idealização, poderá conduzir, em outro momento, ao seu oposto: a identificação com o desvalor, o negativo, levando à deflação do ego.

Diz Neumann (1991):

É de importância secundária se tal sofrimento adquire a forma de renúncia ascética,da superação heróica, da adoração de fé, ou da fiel observância da lei. No sofrimento, acolhe-se na consciência a situação humana básica de ser limitada. (p. 27)

A dimensão ética do indivíduo exige em algum momento um comportamento herege em relação ao status quo. O Self se sobrepõe à consciência enquanto esta representa a ética coletiva. O indivíduo como homem do grupo se opõe aos valores coletivos. Este passo é necessário para a evolução ética, mas ao mesmo tempo engendra o conflito entre a responsabilidade anônima grupal e a responsabilidade ética individual. A identidade grupal torna-se ameaçada ante a consciência das diferenças.

Em nosso momento histórico uma nova ética se impõe à construção da identidade individual e grupal. Essa ética não se refere à adoção de valores ou pressupostos de um fundador ideológico ou de uma elite, ou mesmo à identificação com o perfeito, mas propõe o sacrifício do ego e a integração das diferenças. O princípio da equidade e do respeito às diferenças em uma sociedade cada vez mais desigual aponta para uma nova ética, como ancoragem de nossa identidade como analistas.

É necessária uma releitura das polaridades pai / filho, aluno/ mestre, fundador /seguidores.

O confronto entre Freud e Jung e sua ruptura em 1913 expressa o conflito entre algumas dessas polaridades. O aluno e o mestre, o pai e o filho se confrontam para gerar um novo mestre, um novo fundador, entre momentos de união e separação, em meio a explosões de amor e ódio

Jung, de criatividade e visão para além das fronteiras da consciência coletiva de sua época, aparece como discípulo herético e banido da psicanálise que se manisfestava como pensamento de vanguarda. Ainda que falasse a partir de suas raízes e de seus conflitos, como todo visionário, foi porta-voz de um futuro coletivo nas suas vivências, conflitos e ideais. De outro lado, falava em nome das normas coletivas. Diz ele:

O psicólogo moderno sabe que não pode apresentar mais do que uma descrição de um processo psicológico, formulada em símbolos científicos, processo cuja natureza real transcende a consciência, tal como o mistério da vida ou da matéria. (Jung, 1971b, par. 448)

A psicologia junguiana enfatiza o mistério e o caráter obscuro da psique, o caráter compensatório do inconsciente em relação à consciência, o conflito como elemento gerador do novo e da ampliação da consciência. A identidade se estabelece no confronto com a alteridade.

Em “A interpretação do dogma da Trindade” o Espírito Santo aparece como uma função, cuja natureza divina e humana pode ser entendida como o que foi gerado da dissolução da tensão que reina entre o pai e o filho – o diálogo das diferenças. (Jung, 1971a)

Esse símbolo expressa a passagem do estágio de irreflexão para o da crítica, da unidade para a dualidade, da noção de perfeição para a noção de inteireza. A psique é dual e comporta contradições e conflitos. O objetivo da individuação não é o homem perfeito, mas o completo. Denuncia a responsabilidade humana diante do processo vital. Aponta para a integração na diversidade na medida em que o espírito é aspirado pelo pai e pelo filho.

O estado de identificação se assemelha à participação mística, à identidade inconsciente, à fusão, enquanto a identidade propriamente dita implicaria a discriminação consciente das identificações , das escolhas e a autonomia da pessoa . Entendemos como autonomia no processo de formação de identidade o manejo criativo dos conflitos, o exercício da crítica e a viabilidade da transformação do indivíduo dentro de sua comunidade ou grupo de referência.

A identidade do analista junguiano é expressiva da história da cultura de origem de cada analista. O saber junguiano será primeiramente um suposto saber reconhecido e, posteriormente, uma percepção, uma vivência a ser burilada e traduzida através de símbolos expressivos de uma cultura.

A identidade de nosso fundador e seu reconhecimento está vinculada ao nosso reconhecimento e aplicação em relação a esse legado. No ato criativo e transformador da prática clínica legitimamos a identidade do fundador e possibilitamos o emergir de nossa identidade como analistas.

Entendemos que nossa identidade seria a obra gerada pelo sofrimento, pelo conflito individual e coletivo. A cada etapa surgirão novos mestres a partir das experiências emocionais de cada analista em diferentes momentos do exercício da prática clínica, com diferentes expressões em cada grupo ou cultura. E, conforme o conceito junguiano de individuação, para cada tarefa teremos um mestre e um caminho. Então podemos falar de vários fundadores e de vários mestres.

A identidade do analista junguiano

O trabalho com a contratransferência na prática clínica e na formação de analistas junguianos tem demonstrado a importância de uma compreensão do mito pessoal, das feridas e ideais do analista. A sua vivência de amparo e de desamparo em situação de carência ancora sua capacidade empática como analista. A experiência de ter sido cuidado e amparado no setting analítico é também ingrediente da capacidade de acolhimento.

Os nossos conflitos de auto-estima e nossa ferida narcísica refletem a frustração ante o não atendimento a nossas necessidades vitais e a não aceitação de nossas limitações. Através do mergulho na ferida, individual e coletiva, o analista poderá construir ideais mais factíveis e ganhar permeabilidade e sintonia em relação às demandas de seus pacientes.

Carregamos como analistas as feridas de nossos “pais profissionais”, assim como seus ideais não burilados, na forma de nossas ambições e conflitos de identidade. Carregamos também os conflitos de auto-estima de nossa origem individual e coletiva, que nos países em desenvolvimento da América Latina veiculam as seguintes polaridades: sentimento de dependência versus independência , autoconfiança versus sentimento de insegurança, auto-reconhecimento versus sentimento de inferioridade diante de nossos “pais” profissionais europeus.

Vivemos em um mundo globalizado em que ocorre uma pseudo democratização das diferenças e onde se ampliam a desigualdade e a exclusão social. Só quando confrontamos nossa sombra individual e coletiva saímos da condição de apenas filhos, não em desabono ao “pai”, mas em nome de um pai “transformado e criativo”. Saímos da polaridade pai e filho para a relação de alteridade e de companheirismo.

Podemos pensar na instituição analítica como esse pai idealizado que precisa ser humanizado através de sua participação crescente nos problemas de sua comunidade de referência

Toda instituição aparece como porta-voz do senex, que fortalece a aliança grupal em nome de um ideal de lealdade, mesmo que em detrimento do desenvolvimento integral dos indivíduos membros. Tomamos muitas vezes a coesão grupal como garantia da identidade individual e nos afastamos do confronto com as diferenças.

Consideremos algumas diferenças entre os analistas junguianos:
1- Maior ou menor adesão ao modelo alquímico de transferência ou ao modelo que tem por base o estudo das projeções a partir da história pessoal e do inconsciente individual.

2- Maior ou menor aceitação do pressuposto teleológico de desenvolvimento da psique na direção da totalidade e da saúde.

3- Maior ênfase quer nos métodos de amplificação quer na análise genética e causal com aplicação dos conhecimentos da nosologia psiquiátrica e da psicopatologia.

4- A concepção do método analítico como tratamento que inclui um conceito de adaptação e se referencia na psicopatologia ou maior ênfase no potencial da psique e na transformação mútua (analista e cliente).
Outros aspectos teóricos podem centralizar nossas convergências e divergências, mas me parece de maior urgência nos perguntarmos hoje: Quais são nossas feridas a resgatar, quais são os conflitos, temores e ambições do analista junguiano diante de seus alvos? O que nos une, como analistas junguianos latino-americanos, além de nossas feridas e do sentimento de lealdade a um grupo que busca o seu reconhecimento?

Reconheço a necessidade de alguns referenciais que nos unam em uma busca comum como analistas junguianos ou pós-junguianos, como quer que nos denominemos. Acredito que esses referenciais se constroem e são transformados na prática clínica e não constituem uma condição a priori.

A prática clínica tem legitimado o trabalho com a contratransferência como instrumento para o resgate da emoção do analista na construção de sua identidade profissional. Estudos atuais da contratransferência ampliam a noção de empatia do mero compreender e espelhar para o tornar-se, que envolve o mergulho emocional do analista nas vivências transferenciais e contratransferenciais.

O termo encarnar foi usado por Plaut (1989) e, mais tarde, discutido por Lambert (1981) e Samuels (1999). A idéia inicial se referia a como o analista se deixava transformar no conjunto de imagens projetadas pelo cliente. Posteriormente, o conceito passou a se referir às reações emocionais do analista às projeções transferenciais das quais pode estar consciente ou não. Na contratransferência se incluem também os estados emocionais do analista emergentes na análise que possam estar relacionados a fatores externos ao setting. As vivências contratransferenciais incluem também as idealizações do papel de analista e os aspectos de retaliação e crítica por parte do analista ao seu trabalho. Os conflitos, as demandas e as feridas de auto-estima do analista são alfa e ômega de sua identidade profissional e se expressam na contratransferência. Na prática clínica e na supervisão do trabalho de colegas contemplo e vivencio algumas dessas feridas.

Às vezes nos comportamos como filhos fiéis a uma suposta doutrina, os pressupostos junguianos, que passam a ser tomados como verdades inquestionáveis; outras vezes, como heréticos, descrentes, nos apresentamos como estressados pela profissão; outras, simplesmente passivos e omissos, nos denominamos ecléticos; outras, permanecemos na condição de simpatizantes, mas não comprometidos. Ou, ainda, como defensores incansáveis de uma doutrina, missionários, nos tomamos como donos da verdade, do que está do lado do bem, do divino, do perfeito, lutando contra posições de abordagens divergentes, que são identificadas como representações do mal.

Essas imagens e personas expressam os conflitos da tarefa de “tornar-se” analista, sujeito e objeto do processo de transformação da psique, em suas dimensões individual e coletiva. Fugimos de nossa impotência ante a grandeza da psique, ora assumindo posições dogmáticas, ora nos omitindo. Enfatizamos os aspectos grandiosos da tarefa do analista e procuramos ocultar a impotência face ao mistério e amplitude da psique. Esse nível de identificação é parte do processo de formação da identidade.Através do processo de idealização e desidealização morremos e renascemos para novos limites e referências.

A construção da identidade do analista compreende um processo criativo intimamente ligado à experiência da morte e do renascer, o que caracteriza a experiência psicológica da transformação e está sempre em processo. Para que se efetive, passamos por dentro de nossa impotência. Sofremos a dor da perda do nosso mestre e protetor idealizado, que na verdade condensa nossos ideais a serem burilados a cada momento de nosso processo de desenvolvimento como analistas.

Diz Jung (1971b): “Faz parte da ética do pesquisador poder confessar o ponto em que seu saber chega ao termo. Esse termo significa o começo de conhecimentos mais altos“. ( par. 468)

Referências bibliográficas

Jung, C.G. (1971a). Interpretação psicológica do dogma da trindade. OC 11, II. Petrópolis: Vozes.

(1971 b). O Símbolo da transformação na missa. OC 11, III. Petrópolis : Vozes.

Lambert, K. (1981). Analysis, Repair and Individuation . London: Academic Press.

Neumann, E (1991). Psicologia profunda e nova ética. São Paulo: Paulinas.(Col. Amor e Psique)

Plaut, A. (1989). The transference in Analytical Psychology (1970) in: Fordham et al. Technique in Jungian Analysis. London: Karnac Books.

(1994). What do I mean by Identity? In The Journal of Analytical Psychology, London: The Society of Analitycal Psychology, 139: 351-360.

Samuels, A (1999) . Countertransference, the Imaginal World. And the Politics of the Sublime. In: C.G. Jung Analytical Psychology and Culture. Página da Web (Boulder, Colorado)

(1) Esse artigo foi publicado nos Anais do II Congresso Latino-americano de Psicologia Junguiana. Foi editado aqui com algumas modificações.

(2) Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica