Celia Brandão, Psicóloga

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Gravidez na adolescência e a transformação dos papéis na família

 Um levantamento feito em escolas de classe média e média baixa em São Paulo confirma que estamos vivendo um momento de transição nos papéis atribuídos ao pai e à mãe dentro da família: a autoridade é outorgada igualmente ao pai e à mãe pelo adolescente. Ele identifica a mãe como proteção, apoio e referência afetiva; uma minoria – o grupo de menor poder aquisitivo – a vê também como provedora financeira. Os relatórios sobre famílias de crianças e adolescentes em situação de rua denunciam a ausência da figura paterna no seu imaginário: a mãe acumula as funções de proteger física e emocionalmente e de educar.

Há dados que indicam um enfraquecimento da figura paterna na família, e sabemos que essa ausência acompanha os relatórios dos casos de delinqüência juvenil. A falta de um modelo de referência na educação secundária está presente também nos relatórios sobre problemas de rendimento e adaptação escolar. Tudo isso aponta para um modelo monoparental e matrifocal de família.

Por outro lado, sabe-se que o nível de fecundidade da adolescente entre 15 e 19 anos tem crescido muito, havendo também um incremento da fecundidade na faixa de 10 a 14 anos. Parece que, no desejo de aconchego e apoio, a adolescente procura constituir um novo núcleo familiar em busca de suporte emocional, dado o desamparo vivenciado em sua familia de origem. Há uma tendência de se entender a gravidez na adolescência como um ato de trangressão. A partir de trabalho com adolescentes grávidas levanto a hipótese de tratar-se de uma tentativa de reparação. A trangressão é uma forma de confronto com o status quo. Mas o que observo na maior parte da população feminina é uma tentativa de entendimento da realidade em que vivem. Tudo indica que um mergulho nas feridas experimentadas na condição de filhas está a serviço desse intento.

Dado o aumento do número de adolescentes gestantes, uma parceria entre o Ceaf e o Programa Einstein na Comunidade na favela de Paraisópolis foi criada em 1999, com o objetivo de realizar um trabalho preventivo: o atendimento psicológico à gestante adolescente. Depois de submetidas à triagem, as gestantes participavam de um grupo específico, com um foco diferenciado no atendimento psicológico.

Esse trabalho possibilitou uma reflexão sobre a realidade das famílias de baixa renda e do meio em que vivem. Pudemos também pesquisar parte do imaginário das adolescentes sobre o lugar do pai e da mãe na família, sobre suas expectativas em relação ao companheiro, sobre a reversibilidade das polaridades mãe / filho, pai / filho, mãe / pai.

Pesquisando o imaginário da adolescente, constatamos que se vê precocemente solicitada a uma conduta adaptada ao papel de mãe, ao mesmo tempo em que apresenta um discurso de filha que se viu na maior parte das vezes privada do atendimento a suas necessidades por parte do pai, da mãe ou de figuras substitutivas. O desafio apresentado foi o da criação de novos espaços na vida da adolescente-mãe, para que lidasse com os lutos e as perdas decorrentes da maternidade precoce, trabalhasse com as idealizações de um lado e desesperança de outro, e viabilizasse projetos de vida.

Há ainda o preconceito de que as famílias geradoras de abandono e de desvio de conduta não responderiam bem a um trabalho psicológico e que, portanto, o trabalho do psicólogo se restringiria ao encaminhamento dessas famílias para instituições assistenciais ou a um trabalho sócio-educativo.

Porém, nossa prática com a adolescência vitimizada nos mostra que o adolescente tem sua forma de reagir de acordo com a potencialidade do seu self e não necessariamente reproduz as formas de agir de sua família. O grupo familiar e educadores traçam caminhos possíveis, espaços de ação e possibilidades de representações, mas a adolescente apresenta uma reação criativa que traz marcas de sua individualidade.

Concordo com Mara Sidoli (2000) em que compartilhamos uma coletividade ontológica, mas cada indivíduo é único e não apenas interpreta, como também responde de modo criativo à sua experiência. Essa realidade aponta para a necessidade de ação junto ao mundo interno desses adolescentes e de suas famílias como forma de promover sua inclusão social e saúde mental.

Por que cresce o número de adolescentes grávidas?

A adolescência é uma fase de profundas transformações físicas, psicológicas e sociais. Conceitualmente, entende-se como segunda década da vida (de 10 a 20 anos), fase em que se estabelecem novas relações do adolescente com ele mesmo, nova imagem corporal, novas relações com o meio social, com a família e com outros adolescentes.( Duarte, A. 1996)

Cito alguns fatores, alguns deles apontados pela Dr Albertina Duarte (1996) como responsáveis pelo aumento de gravidez na adolescência.

1- Adesão aos valores grupais relacionados à liberdade e à sexualidade.

2- Imediatismo ( intolerância à espera no atendimento de suas necessidades ou fantasias).

3- Onipotência e sentimento de indestrutibilidade

4- A liberação sexual dos anos 60, que determinou uma iniciação sexual precoce.

5- O material erótico veiculado de forma indiscriminada pela mídia favorece uma prática isenta de responsabilidade .

6- A menarca que, conforme pesquisas, incide em época precoce em razão de melhorias nas condições de vida e na alimentação nas últimas décadas. (Duarte, A. 1996)

Muita coisa vai mudar

“Quando ela nascer, só ela vai ficar feliz.”, diz uma das gestantes adolescentes ao referir-se ao bebê que vai nascer.

A reação das familias à gravidez precoce oscila da agressão à apatia permissiva, até a conduta de superproteção, que priva a adolescente da responsabilidade e do acolhimento necessários para lidar com tal impasse. Nesse contexto, constatamos que o trabalho psicossocial é de suma importância para a mediação de conflitos, tornando possível o relacionamento entre a adolescente e sua familia, base da estruturação da identidade e dos papéis na familia.

São muitos os conflitos a serem confrontados: a mãe adolescente encarna o arquétipo do herói, tentando resgatar seu vínculo com a mãe de origem e estruturando um mecanismo de defesa onipotente contra o desamparo.

De acordo com Fordham, em relação às defesa do self, devemos trabalhar tanto por meio da dependência quando da perda no contexto da vivência onipotente da indestrutibilidade do self (JAMES, A., apud FORDHAM, 1995)

Pesquisa realizada pela Dra Albertina Duarte, médica ginecologista e obstetra, indica que na grande maioria dos casos, as adolescentes tinham informações sobre a necessidade do uso de contraceptivos. (DUARTE, A., 1996)

Por que as adolescentes se esquecem do contraceptivo? O herói precisa debruçar-se sobre si mesmo, sofrer para compreender. Seria nessa luta que se lançariam as gestantes adolescentes ao se esquecerem do uso do preservativo?

Faz parte da saga do herói a morte trágica. Mas essa morte traz com ela o benefício de humanização de uma dimensão da cultura. (JUNG,1985).
Lançar-se no episódio que determina a morte precoce da adolescência teria como alvo curar a ferida da filha, de uma vivência de desamparo, caos interior e falta de afeto.

As adolescentes grávidas revelam em suas fantasias a busca de um novo modelo familiar, refazendo a trajetória do herói que se lança na tarefa de mediador de diferente níveis, das diferenças, do resgate de si mesmas. Haverão de se confrontar com seus medos, da deformação do corpo, da má formação do bebê, da morte, do abandono, da fome, da dor, presentes em seus relatos. O parto é descrito como momento de dor, de desamparo e de ameaça de morte. Mesmo assim, as adolescentes mergulham de forma heróica em suas privações e vão de encontro à hora do parto, que as libertará, bem como a suas famílias, por meio de um bisturi, que em suas fantasias, tem o poder de trazer discriminação para alguns de seus impasses.

O trabalho com a gestante adolescente levanta questões quanto ao lugar que cada um ocupa na família, traz uma ecologia particular, na qual a família de origem da mãe adolescente exerce um papel de formação dos novos indivíduos.

Cresce o número de avós que educam e cuidam dos seus netos. A figura do avô é inexpressiva nos relatos. Os filhos de primeira gestação são entregues aos cuidados da avó quando a mãe adolescente não se une ao pai da criança em relacionamento estável ou quando se envolve em outro relacionamento, o que é por demais frequente.

O que buscam as gestantes adolescentes?

”Eu não tenho raiva dele. Eu amo ele! Ele foi pra Bahia mas vai voltar., diz G., 15 anos, abandonada pelo namorado quando este soube que ela estava grávida.

A adolescente sonha com o amor romântico, mas sonha principalmente em formar uma nova família reparadora da família de origem. Ter um companheiro, pai da criança ou não, é uma forma de manter- se dentro de um conceito de moralidade ou de ter um provedor. Há pouca clareza sobre o papel do pai da criança que, quando se torna companheiro, é visto apenas como parceiro sexual e referência afetiva para suas feridas de filha.

– “Quando ela nascer só ela vai ficar feliz!…”, palavras de uma adolescente grávida em relação ao sua filha que iria nascer.
– “Minha mãe diz que minha gravidez vai me separar dela …”, palavras de outra adolescente sobre o relacionamento com sua mãe durante a sua gravidez.

Em alguns relatos aparece o ideal romântico, que sustenta a negação das dificuldades e da situação de desamparo em que a adolescente se encontra. O ideal romântico se alterna com o medo do poder destrutivo do mundo masculino sobre o feminino.

Psicóloga : – Que tipo de mudanças a gravidez faz na vida da adolescente? Adolescente 1 “Muda a vaidade, a gente tem que ser mais responsável, a gente não tem mais o direito de fazer o que a gente fazia antes e algumas meninas também deixam de cuidar delas para cuidar da criança.”
Adolescente 2 “Nós não temos a mesma liberdade como antes e também a adolescente sofre com o amadurecimento.”
Adolescente 3 “Muda muito porque ela vai ter que parar de estudar para trabalhar.”

O medo da dependência, da submissão, da perda liberdade, dos diferentes tipos de abuso atribuídos à intimidade de uma relação estável, estão presentes em seus relatos. A adolescente sabe que, de um modo geral, na família, a vida de quem não trabalha é absorvida pelo provedor. Por isso, sonha com a independência financeira, com a autonomia, mas sonha também com o apoio afetivo que associa à condição de dependência.

Como nos alerta Kerenyi (1985), a epifania do herói é acompanhada de uma inflação correspondente: uma grande pretenção desenvolve-se na direção de uma convicção que alguém é extraordinário ou, ainda, na impossibilidade da pretensão ser preenchida, só se prova a própria inferioridade, o que é favorável ao papel do herói sofredor. (JUNG e KERENYI,1985) .

Algumas falas das adolescentes : “Se ele não quer desse jeito a gente faz algo pior.” Falando do pai autoritário que não permite que ela namore. (M. , 17 anos, que engravidou e saiu de casa para morar com o namorado ).

“Ela pensa que o que aconteceu com ela quando era adolescente tem que acontecer comigo também.”( A. 17anos )

Ela fisicamente vitimizada pela mãe até os 15 anos, e depois espancada pelo irmão. Quando engravidou estava saindo com um rapaz há seis meses e sabia sobre a necessidade do uso de contraceptivos. Diz que não sabe o que aconteceu. Mudou-se para a casa do namorado que havia sido preso por tráfico de drogas e tinha 22 anos. Conta que a avó também abusava fisicamente de sua mãe.

A figura paterna emerge como representativa do poder patriarcal nos seus aspectos negativos, o pai é uma figura terrível e não há nenhuma proteção paterna em quase todas as narrativas.
Quando a mãe da adolescente é abandonada pelo marido, ou vitimizada pela sua condição em um contexto marcado por desigualdade e discriminação de gênero ou idade, torna-se abusadora desde que se sente no direito de usar o poder autoritário devido à sua própria vitimização.

A ferida do vínculo mãe/bebê e a busca de um pai assegurador aparecem em suas falas. Esse pai emerge junto ao ideal de construção de uma nova familia. Para a adolescente, foi preciso um ato heróico de desafio à lei coletiva para buscar uma lei mais factível em relação às suas necessidades.

A permanência do status quo a qualquer preço é uma das regras do pai devorador arquetípico. Abdica-se das demandas da consciência individual em favor das forças dominantes da consciência coletiva. Há uma coletivização da consciência. As vozes do inconsciente, fonte de formas renovadas de vida e raiz do crescimento, deixam de ser ouvidas a partir de um contexto familiar opressivo e abandonador.

Os impulsos de contestação do status quo na adolescência, às vezes na forma de uma atuação, como também poderíamos entender a gravidez precoce,
revelam um desejo de crescimento e de mudança da realidade e ambiente de vida. Esses movimentos de contestação vão em busca de uma criança divina mediadora de conflitos, a sabedoria do Self.

Mas nem sempre temos um final feliz, e esse movimento de busca, não podendo ser trazido à consciência da adolescente, na forma de um resgate de sua auto-estima, continua se repetindo em novas gestações não planejadas, quase que compulsivamente. A adolescente encena seu conflito entre render-se ao pai devorador por meio de uma adesão ao coletivo que lhe propõe uma ausência total de objetivos, ou dar à luz os filhos potenciais até então encapsulados em um ambiente de vida pouco receptivo. Nesse contexto, acriança que irá nascer herda a tarefa de preenchimento dos vazios matriarcais e de resgatar um sentido de responsabilidade.

Algumas questões permanecem para nossa reflexão quanto à busca da gestante adolescente.
Dar à luz a própria identidade e criatividade? Recuperar a esperança em um futuro criativo?
Restabelecer o ciclo revolucionário das gerações?

Estaremos diante de uma nova ecologia na familia, da busca de uma nova parceria entre homens e mulheres? De uma nova familia, na qual educar e prover deixem de ser concebidos como atributos naturais de um dos gêneros e passem a ser responsabilidade integral do casal e dos filhos também participantes na construção da lei?

Tarefa da Familia

A tarefa onipotente conferida à familia no século XX, de cuidado integral de seus indivíduos frente ao isolamento das grandes cidades, megalópolis , agora deve retornar, no novo milênio, também à responsabilidade da consciência coletiva e da comunidade como um todo.(ARIÉS, 1978)

A demanda feita à familia em nosso momento fala da necessidade de um novo padrão de relações, de uma nova afetividade, de um novo sentido de solidariedade. A familia da transição para o novo milênio prossegue com a transformação da afetividade, dividindo a tarefa de socialização entre seus membros, com o apoio necessário de outros segmentos sociais.

É necessário um olhar para o coletivo, no afã de tecer uma nova rede de relações que inclua as diferenças em maior simetria. A busca de nossas adolescentes denuncia a necessidade de um olhar para a vivência interna do outro que constitui uma abertura para a alteridade. Esse seria um final feliz. Não é, porém, o cenário a que estamos expostos durante a maior parte do tempo. A adolescente vai crescer junto com seu bebê, em busca de seu cuidador interno. Mas para isso a assistência familiar e comunitária e o trabalho com sua auto-estima serão fundamentais, na busca de uma nova interação entre poder e afeto.

Referências bibliográficas :

1- ARIÉS, P. Historia Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

2- ASTOR, J. Michael Fordham Innovations in analytical Psychology. Cornwall: TJ Press, 1995 .

3- CARVALHO, B. M .C. The families of the street – bound children in Family Drawing – Publicação do Projeto Travessia do Bank Boston,1998.

4- DELEUZE. G. FOUCAULT, M. 2ª- ed. São Paulo, Brasiliense,1991.

5- DUARTE, A. Gravidez na adolescência. Ai como sofri por te amar. Rio de Janeiro, Editora Artes & contos , 1996.

6- JUNG G.C.; KERENYI, C Science of mythology. London: Ark Edition, 1985.

7- SIDOLI, M. When the body speaks – The archetypes in the body. London: Phillis Blakemore, 2000.
8- Thorstensen, Sonia e Equipe do Projeto Caminhando doCeaf. Levantamento apresentado em palestra no Ceaf , em junho de 2000, “Seminário sobre Violência” – não publicado.

(1) Esse artigo foi anteriormente publicado no livro Um olhar sobre a familia – Trajetória e desafios de uma Ong –Ceaf – Editora Ágora – 2003. Aqui foi editado com algumas modificações.