Celia Brandão, Psicóloga

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Contratransferência e a auto estima do analista

Nesses anos de prática clínica pude entender que a capacidade empática do analista tem raízes em sua auto-estima que se constrói ao longo de toda sua trajetória como analista. Uma parte diferenciada de seu self é disponibilizada pela experiencia de ter sido acolhido em situação de carencia de cuidados.

Entendemos que a auto-estima se constrói através do reconhecimento das qualidades e dos recursos pessoais e do acolhimento das dificuldades e feridas. Uma boa auto-estima permite a transformação e a interação dinâmica dos vários aspectos da personalidade.

No processo analítico ocorrem configurações psicológicas concretas relacionadas à auto-estima do analista como ingredientes do processo contratransferencial.

Chamarei aqui de contratransferência a emoção e os sentimentos do analista relacionados ao processo.

No processo analítico é preciso permitir a fusão, a vivencia do que ainda não pode ser nomeado , para depois poder ocorrer a separação e a discriminação. É nesse contexto que ocorre o fluxo dos afetos e a análise das várias formas de configuração da libido.

Toda análise faz um percurso de um lugar ficcional de um desejo de acolhimento absoluto e incondicional ao lugar do acolhimento possível. A condição de filiação e de amor incondicional mantém a ficção de indestrutibilidade frente aos conflitos e sofrimentos do cotidiano analítico. Não só o cliente perde o lugar de filho dileto na busca da alteridade.O analista deve perder lugares em sucessivos lutos e desidealizações durante o processo. Trava luta entre suas possibilidades reais e sua ambição, entre seu desejo e os limites de realização.

Yacobi nos lembra que na inflação egóica, o ego é levado a se deixar seduzir pelas imagens arquetípicas e o teste de realidade está ancorado em idéias e noções onipotentes de perfeição. Esses sentimentos são manifestações do self grandioso ( Yacobi, M. -1984 )

O analista encontra-se mais cedo ou mais tarde em relação ao cliente, em um estado de mutualidade no que se refere ao processo criativo inconsciente de transformação da libido. Mas essa mutualidade deve ser instrumentalizada pelo analista que caminha também com seus referenciais teóricos. As sínteses operadas pelas interpretações precoces do analista escondem o medo da ambiguidade, da indiscriminação e configuram um bloqueio na comunicação com o cliente.

A ferida vivida na análise pelo cliente em um contexto contratransferencial não instrumentalizado é o bloqueio da comunicação emocional e do fluxo libidinal .

O paciente se beneficia não só de elogios ou confirmações mas do espelhamento e acolhimento emocional de suas feridas para o que a contratransferência instrumentalizada é a via de acesso. O ingrediente requerido é a disponibliidade afetiva do analista e o mergulho em sua emoção. Deve encarnar a transferencia do cliente e ser ponte também para as desidealizações (Plaut, 1956) mas precisa também acolher e discriminar em algum momento o próprio desejo que de forma alguma é isento ou neutro.

Lembro aqui palavras de Dra.Von Franz:“Onde não existe emoção não há vida….A emoção é o veículo da consciência; não há progresso na consciência sem emoção….O fogo tem de arder até que o último elemento impuro seja consumido, que é o que todos os textos alquímicos dizem…o fogo não pode ser estorvado mas apenas sofrido até que arda completamente o que é mortal ou corruptível…a inconsciência…é esse o significado, a aceitação do sofrimento.” ( Von Franz-1980-pag. 223).

O analista não poderá escapar da dor própria ao seu desenvolvimento .

K. Lambert reflete sobre o juramento médico de Hipócrates onde o tema tratado é o caráter central da personalidade do médico no uso do conhecimento da medicina e na administração do poder inerente à profissão , qualquer que seja sua bagagem de conhecimentos.

Diz o juramento médico:

….”Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer , nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda”( Lambert, 1981, pag.35)

Em outro documento , a ‘Carta do Apóstolo Paulo aos Corintos” há uma idealização poética de ágape, com a sugestão de sua generalização e universalidade na esfera da conduta.

Em ambos os textos as qualidades requeridas de um lado ao médico e de outro lado ao pastor da igreja podem ser entendidas como alvos, aproximações e não qualidades imutáveis de caráter.

Diz Paulo:

O amor, caridade ou amor de dileção, é paciente, é benigno, não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura seus interesses , não se irrita. Não guarda rancor, não se alegra com a injustiça mas regozija-se com a verdade.( Lambert cita Paulo , 1981 pag. 35)

A idéia da generosidade e da entrega presentes em ágape são alvos, qualidade arquetípica do amor divino que também aparece no juramento de Hipócrates.

Tocamos como analistas arquetípicamente as psicopatologias do pastor e do médico .

A dissociação contida na idéia de que a inveja, a raiva e o amor de dileção sejam incompatíveis não se faz realidade nas sessões de análise. A inveja está contida no amor idealizado e na ambição de desempenho do analista.A raiva expressa o ressentimento frente a nossas ambições e demandas emocionais frustradas. Lidamos com a psicopatologia da inveja na contratransferência, e com a impotência depressiva mascarada pela persona onipotente de analista. A habilidade exigida ao analista de permanecer constante e confiável se confronta com a injunção ética de ser verdadeiro e fiel aos seus sentimentos e percepções.

A análise envolve injunções éticas que estão íntimamente ligadas à habilidade do analista em lidar com suas emoções frente as sucessivas situações e convites para fazer triunfar o bem sobre o mal. O analista não escapará aos conflitos relativos ao poder.

Para Deleuze a uma quantidade de fôrça qualquer corresponderia um poder de ser afetada.Um corpo teria mais fôrça conforme o seu poder de ser afetado. Nesse sentido , o poder se identifica com a força de influir ou de também ser determinado . Nietzche reflete que a vida instintiva é uma elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade- a vontade de poder. O poder de ser afetado não constitui passividade, mas afetividade, sensibilidade e sensação.A vontade de poder seria o substrato da possibilidade de influir e de sofrer influencias e seria a forma afetiva de que derivariam os outros sentimentos ( Deleuze G., 1991, p.96 ).

Acredito que na permeabilidade emocional e afetiva residem a força e a capacidade empática do analista e não em um apego excessivo a uma teoria ou a qualquer fundamentalismo.Essa força não nos é doada mas é resultado de uma dura luta durante toda nossa trajetória.

Os nossos símbolos de poder carregam nosso potencial vital enquanto a trajetória do “se tornar analista” demanda um aparar constante de nossos desejos. Nossos sentimentos de exclusão , impotência , solidão revelam a não aceitação de nossas feridas.O mergulho na própria ferida possibilita ao analista a entrega ao passivo que é ativo,.se deixar afetar pelo outro, pelo desconhecido que há em nós na tarefa de intermediar e acolher o sofrimento humano.

A prática de supervisão tem legitimado o trabalho com a contratransferência como instrumento da técnica.O trabalho com sonhos, com imagens no relato das sessões tem sido revelador. O termo empatia se amplia do mero compreender intelectual e o espelhamento para o tornar-se que envolve o mergulho emocional do analista.

Relato em seguida uma experiência de supervisão.

No início a analista estava muito resistente em atender M.C. porque tinham uma amiga em comum. Sentia como se a relação começasse numa desigualdade porque ela poderia saber de alguns detalhes de sua vida particular que não havia lhe contado.

M.C. tem 32 anos, e tem uma formação em Administração e Comércio Exterior. Ela é caçula etem dois irmãos mais velhos. Afirma que em sua família, não há espaço para manifestações emocionais. Era tratada como uma garotinha pela familia. O pai tornou-se alcoolista e quando M.C. tinha 12 anos, o pai depressivo é forçado a deixar a empresa da familia. Foi aconselhado pelo médico a abandonar tudo e construir uma nova vida em outro continente. Dois meses depois, o pai se suicidou.

Aos 17 anos, a cliente mudou-se para a capital para cursar a universidade. Diz que sempre se sentiu sozinha, mas que iria provar aos seus irmãos que ela também era capaz de ter sucesso.

Aos 23 anos trabalhou durante 1 ano no Brasil e com o contrato de trabalho encerrado, só conseguiu voltar para o Brasil sete anos depois. Atualmente é responsável por uma unidade de negócios muito importante de uma empresa na América Latina onde gerencia 15 homens.

Veio procurar ajuda para tentar entender porque o chefe a incomoda desta forma, a ponto de lhe causar insônia e “crises de nervos”. Procurou a analista porque poderia ser analisada em sua língua materna.

A analista sempre ficou muito incomodada com o fato da cliente saber detalhes da sua vida pessoa por terceiros. Diz não sentir o mesmo incômodo com relação a outros clientes na sua prática clínica. Este foi um dos principais motivos que a levaram a apresentar o caso para a supervisão.Ao relatar o caso apresenta-se menos vivaz do que o usual e fala em tom de voz mais baixo.

Realizamos um roll-playing em que alternava os papéis de analista e cliente. Ao encenar a cliente irada gritando, tem o insight de que a cliente a intimidava com sua raiva e suposto poder. Havia mudado horário da cliente para as 7 horas da manhã quando os vizinhos ainda não haviam chegado. Desta forma afastava-se de uma suposta crítica. Continha-se cada vez mais cedendo espaço à cliente e anulando seu papel mas o que tentava fazer na relidade era recuperar o poder que sentia ter perdido. Na medida que fomos traduzindo seu incômodo pode resgatar como se relacionava com emoções explosivas, raiva e poder. Estava intimidada pela cliente.

Após a supervisão e a análise a analista teve o seguinte sonho:

“ Entro em meu consultório e vejo a seguinte cena: estou sentada em minha poltrona, amarrada com cordas nas mãos e nos pés. Na outra poltrona a cliente também sentada, vestida como se fossetrabalhar ao sair da sessào. Olho atentamente para ela e vejo crescer dias marias- choquinhas em seus cabelos, e ela então se transforma numa garotinha de 11 anos.”

Na primeira sessão com a cliente, depois da supervisão deste caso, ocorreu o seguinte fato: M. entra na sala da análise, abre a bolsa e retira três CD’s da analista que esta não havia lhe emprestado e que pegara da sala de espera. Dois deles de músicos do seu país que ela não conhecia. E outro de Bossa Nova brasileiro.

Neste momento se desvela o contexto transferencial e contratransferencial de inveja e competição . Essa inveja poderia ser criativa se instrumentalizada. A analista se sentindo ameaçada, embora intuísse o problema, não tinha até o momento disponibilidade afetiva para atuar em análise.Vivia inveja inconsciente do suposto poder da cliente. A partir do momento em que a analista reintegra seu sentimento depressivo de impotência a cliente pode apresentar sua inveja e seu desejo de contato que estavam sendo vividos de forma sombria e atuada. A analista pode, então, falar de seu sentimento de invasão com a cliente. O processo analítico saiu de seu atolamento. Como em seu sonho a analista esteve até então de mãos e pés atados.

Mais tarde a analista elabora: ”Posso afirmar que a análise começou somente naquele momento. Ou seja, a “tensão” que se entrepunha na minha relação com ela havia ali se dissolvido quando eu percebi que atrás daquele personagem, a executiva de sucesso, havia uma garotinha de 11 anos, e que não fazia sentido eu ter medo e me sentir amarrada ou paralizada na relação”.

A analista que chegara para a supervisão contida e com medo recuperava grande parte de seu poder e criatividade, sua auto-estima. A menininha analista também estava crescendo. Sua contratransferência instrumentalizada se transformara em ouro , em matéria prima da técnica analítica.

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