Celia Brandão, Psicóloga

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Cantando o luto amoroso

beija-flor 2711 004.jpg editada.

 

Construímo-nos na relação com o outro. Podemos entender este Outro como parte da configuração psíquica de todo indivíduo, ou então, como o outro “de fato”, aquele que existe além de mim.

Desde o primeiro momento de nossa existência, trazemos conosco o conflito entre união e separação, completude e incompletude, vida e morte.Vivemos várias separações durante a vida: interrupções de relacionamentos ocasionadas pela morte física ou por amores frustrados e, obviamente, a perspectiva da inevitável separação da própria vida pela morte.

Segundo Zygmunt Bauman, amor e desejo, constituem polaridades em que o desejo almeja consumir enquanto o amor deseja possuir. Dessa forma, ambos estariam ameaçados de sucumbir a uma separação.

 

Diz o autor:

 

Enquanto a realização do desejo coincide com a aniquilação de seu objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na sua durabilidade. Se o desejo se auto destrói o amor se perpetua”.

(Bauman, 2003, pag 24)

 

Eros é uma relação com a alteridade, com o mistério, ou seja, com o futuro, com o que está ausente do mundo que contém tudo o que é…O Pathos do amor consiste na intransponível dualidade dos seres”.

(Bauman cita Levinas, 2003, pag 22)

 

 

A separação acena com uma experiência de morte em vida desde os primeiros momentos de nossas vidas. O bebê que se separa, mesmo que por instantes, da mãe, pode viver essa ausência quase como se fosse uma perda definitiva . Não distingue, no sentido simbólico, separação definitiva da morte em si. O que não está mais na sua presença está ausente do mundo. A agonia primitiva de perda também pode ser vivida pelo bebê como ameaça de auto- aniquilamento dado que ainda não tem construida uma imagem interna do eu. A primeira consciência de separação é a ausência temporária da mãe ou do cuidador.

Em um processo de separação, na vida adulta, angústias primárias retornam à consciência. O desejo de afastar o que nos causa o sofrimento, ou de fazer-se distanciar, é confundido com o simples decretar da morte do outro. Na vivência psicológica de uma separação, ocorrem sentimentos ambivalentes: de um lado a aceitação da perda e, de outro, o anseio compensatório de completude e de fusão com o objeto de amor.

Quando uma vida se extingue, um relacionamento se interrompe, a única presença possivel é a da falta, que, por sua vez, se faz representar na lembrança de uma presença. Na elaboração de uma perda amorosa é preciso restituir à consciência a parte que se foi com a separação, que se foi com o outro, e trazer de volta a integridade do eu.

Focamos nesse trabalho o luto pela perda do objeto de amor, vivência de morte decorrente do fim de um relacionamento, como também discorre Caruso em seu livro A separação dos amantes :

Apesar de que eu ainda vivo em meu corpo, sou um cadáver no outro, naquele ser que me amou e a quem amei. O esquecimento é, portanto, a primeira e grande defesa contra a própria morte. Mas significa também um homicidio em nome da vida e o suicídio da consciência.” (Caruso Igor,1981, p 20).

 

Em uma separação, as polaridades do bem e do mal se aproximam na tentativa de reconstrução de uma imagem do objeto de amor. Instala-se um período de ambivalência: luta entre o sentimento de frustração e o alívio pelo término da relação. Será necessário integrar esta ambivalência emocional. Os sentimentos contrários podem ser vividos de forma integrada através do mergulho emocional na dor da perda, ou de forma dissociada e melancólica, em que o enlutado se funde com o que morreu.

Elaborar uma perda amorosa envolve níveis de renúncia que são expressos nas vivências emocionais as quais se alternam até deixar ir de vez o objeto de amor:

 

  •                               Tentativas de manter viva a relação e negação do conflito.
  •                               Sofrimento e agonia acompanhados do medo de morrer junto com o que morreu.
  •                               Resignação que expressa uma falsa aceitação da perda.
  •                               Renúncia verdadeira ou sacrifício.

 

O tema da separação nos lança à necessidade de refletir sobre a natureza do vínculo amoroso na contemporaneidade. Segundo Bauman, a relação amorosa na pós-modernidade é marcada pela realização impulsiva do desejo em prejuízo da qualidade do investimento amoroso.

Em uma sociedade globalizada, a troca emocional, dinâmica instalada pelas polaridades amor e desejo, vê-se diluir no consumo impulsivo das relações. Nesse contexto, exclui-se da vivência dos amantes o tempo ritual que há ao caminhar do desejo ao amor, e que envolve o tempo do outro.

 

Assim não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória – inexistente, embora ardentemente desejada – de evitar suas garras e ficar fora do caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão – mas não se tem a mínima idéia de quando isso acontecerá.” (Bauman Z, Amores líquidos , p17, 2004)

 

Como se o amor e a morte se entrelaçassem em seu caráter inexorável e arquetípico.

Na contemporaneidade, a auto-estima se confunde com a rápida adaptação às circunstâncias, e os ritos de aproximação e afastamento são tragados pela busca desenfreada por satisfação. A falta de acolhimento social para os momentos de transição como o do processo de luto, lança-nos em um movimento de negação que implica a necessidade de desfazer-se precocemente do registro da perda na consciência.

Em uma sociedade voltada para o sucesso individual, o término de um relacionamento é vivido como um fracasso pessoal e tratado com certa desconfiança e rejeição pelo outro. Este, aqui entendido tanto como o outro “de fato”, como também pelo outro protagonizado pela sombra individual. Pois, o sujeito que se separa compartilha de uma mesma consciência coletiva, e tende a julgar-se mesmo quando o restante da sociedade o ignora. Neste caso, ele próprio exercita o julgamento que espera dela, em uma situação de solidão que acentua a angústia de morte vivida na separação.

Quando caímos no luto estamos diante da perda de um objeto. A primeira vivência do luto é a ausência do outro em nossa vida. A ultrapassagem desse momento de ruptura pode não se dar completamente, e o enlutado refugia-se na tristeza, de tal forma, que se confunde e já não sabe o que perdeu.O melancólico perdeu seu próprio eu.

Igor Caruso(1981) defende que a separação de alguém a quem amamos é a presença da morte na consciência e da consciência, a sentença de morte do outro pode significar decretar a morte de si próprio.” O outro morre dentro de mim e a sentença de morte foi igualmente pronunciada em relação a mim; eu também morro na consciência do outro. A morte vivida na separação é a ausência do outro vivo na minha consciência e a constatação da minha ausência na consciência do outro.” (pag 25)

 

 Como viver com a certeza da morte e da separação ?” (Caruso Igor,1981, pag.281)

 

Nascer já é morte e amar já é separação.” (Caruso,1981, pag. 285)

 

 

A música ‘Atrás da porta”, de Chico Buarque de Holanda, é eloqüente ao mostrar a ambivalência dos amantes entre o desejo de manter vivo na consciência o que os faz sofrer, ou o imperativo da consciência de aceitar a separação e viver a morte do sentimento.

 

 

 

Atrás da porta

 

Chico Buarque

 

Quando olhastes bem nos olhos meus

E teu olhar era de adeus.

Juro que não acreditei…..

……………………………………………

Dei pra maldizer o nosso lar

Pra sujar teu nome

E te humilhar

Pra me vingar a qualquer preço

Te adorando pelo avesso.

Só pra mostrar que ainda sou tua.

 

 

Os rituais instalados na elaboração da separação de um objeto de amor que está vivo, da mesma forma que os rituais de elaboração do luto por morte física do ser amado, visam à preservação do que está vivo.

Carlos Machado (1999), antropólogo, relata que o impulso que leva os indivíduos ou coletividades a praticar os seus rituais que têm, neste caso, como elemento central o corpo morto, aponta unicamente para o homem vivo, a sociedade dos vivos. O ritual da morte será, em definitivo, um ritual de vida. Garantir a boa ida ao companheiro é uma forma de preservar a paz dos que ficam.

Faz parte do rito de separação, entendido como uma elaboração de luto, o vai-e-vem, o trazer e mandar embora, tentativas de manter o outro vivo na consciência até deixá-lo ir de vez. Voltar àquele mesmo lugar, mandar uma carta, cantar a canção do encontro inicial, rever as fotos do relacionamento acompanham o processo de separação. Pequenos atos rituais, falas, gestos dirigidos ao ser amado, formam no seu conjunto sistemas que integram símbolos de elaboração da ruptura vivida na separação.

No luto por morte física, a prova de realidade, a morte física, a ausência real, nos mostra que o objeto amado não existe mais.

No luto amoroso em que o objeto não está nem morto, nem necessáriamente distante, sou eu quem delibero pelo seu desaparecimento em minha consciência. Esse processo é extremamente doloroso e conflitivo, seja na ferida de auto-estima, em ter sido esquecido, ou na constatação de que o outro vive bem sem a minha presença, ou ainda no sentimento de culpa e responsabilidade envolvidos na perda junto aos sentimentos de alívio e de falta.

Na vivência melancólica, está presente o sentimento de culpa por não ter morrido junto com aquilo que morreu, ou com quem morreu. A consciência se divide entre o sentimento de dever morrer com o objeto de amor, e o desejo de viver. O ego deseja matar a lembrança do ser amado para livrar-se da dor. Para que se resolva o impasse melancólico será necessário diferenciar o morto e o vivo e recuperar a memória dos bons e maus momentos.

Na separação, há dor também em se separar do próprio sentimento de amor e do sentimento de amor daquele que não está mais presente. Fazer-se acompanhar do desconsolo é adiar a vivência do vazio, na possibilidade de manter a dor como presença possível.

Nesse contexto, a linguagem poética nos auxilia a penetrar um lugar intermediário entre o subjetivo e o objetivo, entre o nosso desejo de escape ao sofrimento e o caráter inexorável do luto em nossas vidas. Escolho poemas, canções, para tentar expressar o inexprimível, o que a razão não consegue alcançar.

 

“Ensina-me uma dor que não passe, que possa fulgir no sulco das lágrimas quando as lágrimas tiverem secado, que possa deixar um lastro sobre a mesa em que a minha cabeça pousou, desesperada. Ensina-me a mansidão desse desespero onde fervem as alegrias passadas e futuras, o explendor do êxtase mortal. Ensina-me a tua morte, que em vida pude apenas surpreender.”( Inês Pedroza, 2002, p. 90 ) .

 

 

Os amantes procuram um espaço ideal onde as polaridades amor e dor se neutralizem. O lançar-se na morte, em uma dor maior, que aquiete a angústia e eternize a ausência, é uma das formas de tornar o seu amor divino e indestrutível.

A tentativa de eternizar o processo de separação e de manter a dor como presença possível, estão presentes em muitas letras da música popular brasileira. Da mesma forma, “virar a mesa” e acreditar na possibilidade de transformação existente na dor .

A canção Mil Lágrimas descreve um ritual de mergulho na dor com destino à transformação e desenvolvimento psíquico.

 

 

Mil Lágrimas

 

Itamar Assunção

Alice Ruiz

 

Em caso de dor ponha gelo

Mude o corte do cabelo

Mude como modelo

Vá ao cinema, dê um sorriso

Ainda que amarelo

Esqueça seu cotovelo

Se amargo foi já ter sido

Troque já esse vestido

Troque o padrão do tecido

Saia do sério, deixe os critérios

Siga todos os sentidos

Faça fazer sentido

A cada mil lágrimas sai um milagre

Em caso de tristeza, vire a mesa

Coma só a sobremesa

Coma somente a cereja

Jogue para cima, faça cena

Cante as rimas de um poema

Sofra apenas, viva apenas

Sendo só fissura, ou loucura

Quem sabe casando cura

Ninguém sabe o que procura

Faça uma novena, reze um terço

Caia fora do contexto, invente seu endereço

A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de ser banal

Chorar for inevitável

Sinta o gosto do sal, do sal, do sal

Sinta o gosto do sal, gota a gota, uma a uma

Duas, três, dez, cem mil lágrimas, sinta o milagre

A cada mil lágrimas sai um milagre.

 

 

 

A canção propõe o mergulho na busca de integração emocional da própria dor como caminho da cura “…quem sabe casando cura” ou…” Siga todos os sentidos, faça fazer sentido.”

A cura está nas lágrimas, no gosto de sal da dor . A separação é preparada pela angústia da consciência e continua gerando angústia na consciência.O milagre ocorre do mergulho na dor e na recuperação do prazer e da auto-estima que se dá por um “milagre”: a superação da angústia.

 

Cito, novamente, Inês Pedrosa :

 

Só vivendo sobre a mudança se podia evitar a dor, só contornando a monstruosa perfeição do tempo se podia vencê-lo. Assim pensava, e enganei-me, porque o tempo não é pensável. Concentrei-me em deixar de ser para poder ser tudo, em esquecer para dominar a existência. Eu sou o tempo; sou nada, o nada veloz e imóvel que molda o corpo do tempo. Deixar de ser é ainda acatar as regras implacáveis do ser”. ( Inês Pedrosa, 2002, pag. 90).

 

Não é possível escapar à imponderabilidade do tempo,das memórias e da própria história.

Eros, fator de ligação, nos lança no absoluto do ”Vou te amar para sempre”. Porém, a idéia do amor eterno supõe o ser eternamente uno. A consciência reprimida do relativo, do limitado, lança-nos em um falso absoluto da mistificação. O ego nos seus ideais de unidade e imortalidade luta contra a facticidade da dimensão trágica do humano. Porém, ego e consciência estão em constante transformação e sujeitos à história. A psique tem como alternativas a aceitação de sua dimensão trágica ou a morte psíquica. Só algo vivo pode reconhecer o que morreu: a psique que continuará sua trajetória e sua tarefa histórica e criativa de auto-construção.

O espaço ritual é fundamental para a elaboração e integração dos sentimentos envolvidos no luto amoroso.Os rituais funerários rurais em algumas coletividades estão repletos de canções e cortejos que criam esse espaço ritual de vivência da dimensão sagrada dos laços. Carlos Machado (1999) analisa sob o referencial da antropologia da performance, que o rito, como gesto simbólico, tem sua especificidade na repetição, eficácia, e pertence à ordem do extra- empírico, ilusão e simulação.

 

 

Diz o autor :

 

A sua estrutura é de natureza teatral, encenando uma situação em que pela mediação do gesto e da palavra se cria uma empatia entre atores e não atores indispensável para sua eficácia. Essa teatralidade implica, lògicamente, num espaço cênico com os seus elementos e objetos carregados de simbolismo, além de atores e respectivos papéis.”

(Carlos Alberto Machado,1999, p. 13)

 

As cartas de amor, os poemas, as canções, ritualizavam no passado, no amor romântico, o que na sociedade globalizada e digitalizada se faz até por e-mail. Durante e após a separação revelavam tradicionalmente a ambivalência desse momento. A correspondência por carta entre os amantes veiculava a tentativa de elaboração simbólica como um substituto ao contato interrompido.

As cartas e os poemas entre os amantes, até a comunicação eletrônica se tornar do domínio público, constituiam um espaço sagrado da comunicação íntima. Hoje, cedem espaço aos torpedos e e-mails do atual ciberespaço e que podem resultar no empobrecimento dos rituais de união e separação por sua imediaticidade. Rompem-se relações por e-mail utilizando-se material de arquivo de mensagens robóticas, diluindo-se, dessa forma, a densidade emocional da despedida, que antes se fazia, na maioria das vezes, pessoalmente.

A qualidade instantânea da comunicação virtual (e-mail) ou simplemente digital (celular) prejudica a possibilidade de ritualização antes presente na correspondência amorosa. Quando a expectativa e a espera são lesadas ou banidas perde-se o tempo e espaço rituais do que se entende como sagrado nas relações afetivas. O sagrado aqui, não tem seu sentido orgânico ou essencialista. Não é sacro, mas humano .

Embora ainda exista uma forte identificação dos jovens à maneira tradicional de comunicação romântica, há também uma grande dificuldade em exercê-la nos tempos atuais. Usa-se a comunicação eletrônica e digital para revelar, além da paixão e o desejo de aproximação, também o desejo e decisão de separar-se. A comunicação digital, realizando-se em um outro tempo, o dá imediaticidade, retira do ritual sua parcela de humano, a troca emocional. Dá-se, em seu lugar, a noção do que é rápido e fugaz.

Porém, a demanda de rituais românticos tem um canal universal ainda vivo entre as artes, na música, linguagem universal que possibilita a expressão dos sentimentos nas suas intensidades, nuances e pausas necessárias ao mergulho emocional.

Compreendemos, pois, que a música nos possibilita um canal de expressão para nossos sentidos mais profundos, como foi definido por Nietzsche “a música tem o poder de dar origem ao mito, quer dizer, ao mais significativo dos símbolos, e precisamente ao mito trágico, ao mito que exprime em palavras o conhecimento dionisíaco”.( Nietzsche, A origem da tragédia, pag 103 )

 

Diz Nietzsche:

…Só o espírito da música nos faz compreender que uma alegria possa resultar do aniquilamento do indivíduo . Porque, nos espetáculos dos exemplos isolados deste aniquilamento, esclarece-se para nós o fenômeno eterno da arte dionisíaca, que mostra a vontade na sua onipotência e, por assim dizer, atrás do princípio de individuação: a vida eterna para além de toda aparência , e a despeito de todo o aniquilamento.” ( Nietzsche – A origem da tragédia, pag .103)

 

A concepção Nietzscheniana da arte é uma concepção trágica . A arte não sublima, não suspende o desejo, o instinto ou a vontade. A arte atua como expressão da dimensão simbólica da psique.

Nietzsche aponta um novo sentido para o sofrimento, um sentido de auto-resgate. Cura-se a dor interiorizando-a mais ainda, no mergulho na própria ferida. A tragédia morre quando o drama pessoal é incorporado como dilema íntimo e o sofrimento é interiorizado para além da idéia de bem e de mal, ou de verdadeiro e falso.

A música popular, como arte dionisíaca, é a expressão da busca cotidiana por novas possibilidades de vida, encenando o drama pessoal com reflexão e ousadia.

Na música popular brasileira, temos uma riqueza de canções de amor e separação que expressam a nossa capacidade simbólica e encenam nossa imensão trágica: a busca do sentido interno do sofrimento inerente a toda vivência.

 

 

Meditação

Antonio Carlos Jobim

 

Quem acreditou

no amor no sorriso na flor

Então sonhou sonhou

E perdeu a paz

O amor o sorriso e a flor

Se transformam depressa demais

Quem no coração

Abrigou a tristeza de ver

Tudo isso se perder

E na solidão

procurou o caminho a seguir

Já descrente de um dia feliz

Quem chorou chorou

E tanto que o seu pranto já secou

Quem depois voltou

Ao amor ao sorriso e a flor

Então tudo encontrou

Pois a própria dor

Revelou o caminho do amor e a tristeza acabou.

 

 

 

A canção nos fala do caminho de reparação da ferida amorosa: o mergulho na própria dor através do ritual de lamento repetitivo até que ocorra a aceitação da separação e possa emergir novamente o encanto pela vida e por um novo amor.

 

Diz Chico Buarque de Holanda:

 

Nos anos 50 , as canções eram de dor de cotovelo, de amor mal sucedido: Risque meu nome no teu caderno pois não suporto o inferno de nossso amor fracassado…” da canção Risque de Ary Barroso .

Ninguém me ama, Ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor” da canção de Antonio Maria.

E haviam também canções de reconciliação como Molambo : ….Voltei dessa vez para sempre se Deus quiser”…..

Após o desespero dos anos 50, pós liberação da mulher, as pessoas se separavam com mais facilidade. Mas tem uma certa brincadeira, uma certa ironia, você fica com isso, eu com aquilo….. Como se separava naquele tempo e não era o fim do mundo como nos anos 50!”( Fonte: entrevista com Chico Buarque – DVD Romance )

 

Nos anos 70, assistimos no Brasil a uma resignificação dos símbolos envolvidos em uma separação amorosa. Já não se protelava mais o desejo de separar como antes e essa mudança se refletiu na música de Chico Buarque, Trocando em miúdos.

A inserção da mulher no mercado de trabalho e a conquista de maior liberdade sexual, facilitaram a mobilidade das relações. O “até que a morte nos separe”, preconizado pela igreja católica, cedeu lugar ao “que seja infinito enquanto dure” do poema de Vinicius de Moraes, opondo-se à idéia de que o tempo curto de relacionamento apontava necessariamente à fugacidade. O relacionamento amoroso já não encarnava precisamente o símbolo da estabilidade, embora o anseio arquetípico de fusão com o objeto de amor permanecesse.

Desde então, o conflito entre submissão e poder absolutos, entre o desejo de agradar e o de controlar, acompanham a tentativa de adaptação a uma nova forma de parceria.

O repertório musical do compositor Chico Buarque de Holanda é expressivo do tema da separação dos amantes nos anos 70 e 80.

 

 

 

 

Trocando em Miúdos

Chico Buarque 1978

 

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim, não me valeu

Mas fico com o disco do Pixiguinha sim, o resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar

As sobras de tudo que já não há

As sobras de tudo que fomos nós

As marcas do amor nos nossos lençois

 

 

Ou na canção de Chico, Eu te amo .

 

 

Eu te amo

 

Chico Buarque e Francis Hime

 

…Se nós, nas travessuras das noites eternas,

já confundimos tantos as nossas pernas ,

diz com que pernas eu devo seguir…

como se nos amamos como dois pagãos

Meus seios ainda estão nas tuas mãos

Me explica com cara eu vou sair

Não acho que estás me fazendo de tonta

te dei meus olhos pra tomares conta

Agora conta como hei de partir.”

 

Todo amor é matizado pelo impulso antropofágico.Todos os amantes desejam suavizar, extirpar e expurgar a exasperadora e irritante alteridade que os separa daqueles a quem amam….Separar- se do ser amado é o maior medo do amante e muitos fariam qualquer coisa para se livrarem de uma vez por todas do espectro da despedida.” Bauman, 2004, p. 33 e 34.

 

 

A canção ‘Mil Perdões’ de Chico Buarque expressa a luta desesperada para evitar a separação a qualquer preço.

 

 

 

Mil Perdões

Chico Buarque

 

Te perdoo por pedires perdão

Por me amares demais

Te perdoo, te perdôo por ligares

pra todos os lugares de onde eu vim

Te perdoô por ergueres a mão

Por bateres em mim

Te perdôo quando anseio pelo instante de sair …

Te perdôo porque choras quando eu choro de rir

Te perdôo por te trair….

 

 

 

 

No ano de 2006, coordenei no Moitará – encontro anual da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica sobre símbolos da cultura brasileira -, uma oficina psicológica com o tema: Trocando em miúdos – cantando o luto amoroso. Contei na oficina com a colaboração de Marilia Castelo Branco, psicóloga e arte- terapeuta, e Nícolas Brandão Moreira da Silva, músico.

A oficina consistiu em um espaço ritual de elaboração do luto amoroso por meio de repertório selecionado da música popular brasileira. Participaram da oficina analistas junguianos de todas as idades.

Foi notável a riqueza e criatividade do repertório musical selecionado pelos participantes e pudemos observar um alto nível de identificação também da população jovem com o estilo romântico de comunicação amorosa.

Sem que houvesse um relato das vivências de luto dos presentes, o grupo pode se comunicar por meio de letras de músicas expressivas de nosso cancioneiro popular e que tratam da perda amorosa. Percorremos vários estilos da MPB, sendo que algumas canções foram sugeridas pelos participantes do grupo que, enquanto cantavam, mergulhavam também em seus lutos. O ditado popular nos diz: Quem canta seus males espanta ou ainda Quem canta reza duas vezes.

Foi possível tocar a emoção e dar a ela seu tempo e espaço com o recurso facilitador da música.Técnicas expressivas de dramatização foram facilitadoras para a realização do ritual. Encenamos, com técnicas psicodramáticas o ritual da despedida, com bexigas abandonadas ao vento.

Os participantes tiveram seu tempo para escrever e desenhar nas bexigas, nomeando-as com o que desejariam ou necessitariam deixar ir embora de suas vidas. O cortejo foi feito entoando a canção da MPB dos anos 30 “Na virada da montanha” de Lamartine Babo e Ari Barroso.

 

 

Na virada da Montanha

Lamartine Babo e Ari Barroso

 

A saudade vem chegando

A tristeza me acompanha!

Só porque…só porque…

O meu amor morreu

na virada da montanha

O meu amor morreu

na virada da montanha

 

E quem passa na cidade

Vê no alto

A casa de sapé

Ainda…

A trepadeira no carramanchão

Amor- perfeito pelo chão

Em quantidade.

 

Pobre casa abandonada

Além

No alto

Sózinha sem ter lá ninguém

Caindo velhinha ao ver os prédios da cidade

Ó velha casa,

Sombra eterna da saudade

 

 

Ao contemplar as bexigas ao vento um participante do grupo diz : -“Está parecendo um funeral”. Com essa fala podiamos concluir que a oficina cumprira seus objetivos.

 

 

Referencias bibliográficas:

1- Bauman Zygmunt, Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad.Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora., 2004.

2- Caruso Igor, A separação dos amantes, Diadorim : Cortez,1981-São Paulo, SP , Brasil

3-C.G.Jung, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Editora Vozes, 2003 – Petrópolis.

4-Deleuze, G. Nietzsche e a filosofia, Rés- Editora Lda – Porto Portugal.

5- Holanda, Chico Buarque. DVD Romance. 2007 -São Paulo

6-Freud S, Duelo e melancolia em O.C.Tomo II,ensaio XCIII, Editorial Biblioteca Nueva , 1981 – Madrid

7- Machado A Carlos, Cuidar dos mortos , Instituto Sintra , Sintra,1999 – Portugal.

8- Nietzsche W. Friedrich, A origem da tragédia, edição sem data, tradução do original publicado em 1886 – Die Geburt der Tragödie Aus Dem Geiste Des Musik – Editora Moraes Ltda- São Paulo, Brasil

9- Pedrosa Inês, Fazes-me Falta, Publicações Don Quixote – 2002-Portugal.