Celia Brandão, Psicóloga

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Tolerância versus Intolerância: Pode existir amizade entre rivais?

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Tolerância versus intolerância: Pode existir amizade entre rivais?

 

“Quando falo em espírito dessa época, preciso dizer: ninguém e nada pode justificar o que vos devo anunciar. Justificação para mim é algo supérfluo, pois não tenho escolha, mas eu devo. Eu aprendi que, além do espírito dessa época, ainda está em ação outro espírito, isto é, aquele que governa a profundeza de todo presente.” Jung, 2009, [HI i (v) ] [2] fol.i (r) /i (v)

 

                                     Introdução

 

Durante a Primeira Guerra Mundial, Jung em sua exploração ampla e profunda do inconsciente que veio a gerar o Livro Vermelho, já nos alertava sobre o paradoxo sentido versus absurdo, presente nas imagens do inconsciente coletivo e nos conteúdos do inconsciente individual. No mundo globalizado vivemos um conflito de significações.  Há momentos em que todos os remédios deixam de ser eficazes e nos deparamos com a “interfusão de sentido e absurdo”, como nos alertou Jung em Líber Novus. Jung, 2009, [HI i (v) ] [2])

Diz Jung:

 

“O espírito dessa época gostaria de ouvir sobre lucros e valor. Também eu pensava assim. Mas aquele outro espírito me força a falar apesar disso para além da justificação, de lucros e de sentido. Cheio de vaidade humana e cego pelo ousado espírito dessa época, procurei durante muito tempo manter afastado de mim aquele outro espírito. […] O espírito da profundeza tomou minha razão e todos os meus conhecimentos e os colocou a serviço do inexplicável e do absurdo. Ele me roubou fala e escrita sobre tudo que não estivesse a serviço disto, isto é, da interfusão entre sentido e absurdo, que produz o sentido supremo.” [HIi (v)[2} fol.i (r) /i (v)

 

Em uma sociedade movida por imediatismo vive-se um conflito entre o tempo da psique e o tempo imposto pela necessidade constante de adaptação gerada por um mundo competitivo. Nesse sentido, identificamos como agressores, ora aqueles que contestam o status quo e a tradição, ora aqueles que se apegam à tradição e o conhecido como única referência de segurança.  Faces da mesma moeda, o sentido e o absurdo, a tolerância e a intolerância nos lançam nos embates da busca de significado em um mundo que se tornou adverso.

A alma desvalorizada se lança em uma luta desenfreada contra a morte através da negação dos próprios limites.  Enquanto uns se lançam em um movimento de busca de mudança, outros negam o conflito e entregam-se a uma falsa resignação. Traçando um caminho reflexivo, da intransigência ao engajamento, da suspeita de todos contra todos à negação das diferenças pergunta-se: pode existir amizade entre rivais?

 

                                          Sobre a tolerância.

 

 O tema da tolerância ocorreu-me como referência fundamental para refletir sobre a rivalidade entre pares e sobre o que nos move a suportar situações onde nos sentimos agredidos, desrespeitados, humilhados.  Ser tolerante é tolerar tudo?

Segundo André Comte-Sponville, (Sponville, A2002, p. 174), “quando a verdade é conhecida com certeza, a tolerância não tem objeto. […] o direito ao erro só é válido à parte ante.” O erro após sua demonstração suprime-se como um direito, um possível engano frente a uma possibilidade de escolha, para configurar uma falta verdadeira.

O problema da tolerância emerge das questões que envolvem opiniões e valores. Tolerar é se responsabilizar. Envolve um auto- sacrifício.  De outro lado, suportar o que não nos atinge pessoalmente convive em consonância com o próprio egoísmo, alienação e omissão. Nesse sentido, a prática da tolerância está ligada à idéia de sacrifício simbólico, a idéia de “sacrifício ritual” presente na psicologia de Jung e nos estudos sobre a violência de René Girard.

Os processos de mediação entre vítimas e agressores demonstram que a partir da integração simbólica dos opostos presentes em toda disputa emerge um terceiro durante a negociação. Esse terceiro é gerado por um sacrifício ritual que opera uma função transcendente: a transformação do desejo de poder e do desejo de vingança.                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Segundo René Girard, (Girard, 2008) o desejo é um drama existencial cujos protagonistas são o objeto do desejo, o eu e o outro. O desejo mimético, ou seja, de ter também o que o outro tem, está por trás da violência e da intolerância entre pares.

Cito:

 

“[…] O espetáculo da violência tem algo de “contagioso”. Às vezes é quase impossível escapar desse contágio, e a intolerância pode, no fim das contas, mostrar-se tão fatal quanto a tolerância. […] Há momentos em que qualquer remédio é eficaz, seja a intransigência, seja o engajamento. Em outros, pelo contrário, todos eles são inúteis, só aumentando o mal que tentam combater” ( Girard, R. Violência e o Sagrado,  p. 45)

 

Para compreender o movimento mimético e o desdobramento em cadeia que ocorre nos conflitos coletivos Girard lança mão do conceito de duplo. Há um contágio presente nos movimentos de massa violentos em que a qualquer momento qualquer um pode se tornar objeto da rivalidade e do ódio coletivo. Os conceitos de duplo, de fusão com o desejo do outro, de projeção e identificação massiva com o outro, ou de identificação do eu com o arquétipo estão presentes na literatura romântica, no tema da alma gêmea e do rival, como também na teoria animista do religioso primitivo que projeta seus fantasmas internos no ambiente, se identifica e teme a violência do fenômeno natural e na psiquiatria e psicologia contemporâneas face ao conflito da ameaça de perda da identidade.

Quando os anseios são parecidos e os pontos de vista divergem temos a situação propicia a um conflito. Ocorre um conflito de significações no qual as representações simbólicas e valores divergem embora alguns alvos possam ser compartilhados entre os litigantes. A negação do conflito, por outro lado, pode levar à tolerância extrema ou à alienação promovida por uma unanimidade defensiva que sustenta o calar-se frente ao intolerável.

Em um mundo em conflito, globalizado, regido pelas leis de mercado, o sujeito se vê pressionado pelo desejo de reconhecimento e de sucesso pessoal a partir de um critério competitivo. Esse movimento se dá em detrimento da sua conexão com as representações simbólicas que pressionam na psique em busca de individuação. A experiência da dissociação entre seus anseios mais íntimos e a demanda externa pode ser vivida como um “dilaceramento” na constituição de sua identidade.  Se na consciência do homem contemporâneo cada um pode também ser o outro, e se o sujeito perdeu de vista a possibilidade da autodeterminação ocorre o que Girard (Girard, 2008, p. 104) chamou de “simetria trágica”. Essa simetria ocorre a partir da negação das diferenças, da universalização dos duplos e da projeção do motivo de conflito em um terceiro que vai operar um papel expiatório relativo à ameaça de conflito e de ruptura vivida pela consciência coletiva. (Girard, 2008, p. 105).

Observamos a presença de temas míticos nas acusações proferidas a um suposto rival e agressor em conflitos coletivos tais como: o tema do traidor, do porta-voz do mal, do louco. A tarefa de eliminar o rival, vítima escolhida como portadora do mal a ser afastado, se dá através de uma amputação do self individual ou coletivo. Com o afastamento do suposto portavoz do mal, as partes em conflito experimentam em seu imaginário a possibilidade da unanimidade que, desta feita não constitui a verdadeira unanimidade, pois se dá através de um mecanismo catártico e dissociado de expiação do mal.  A unanimidade obtida serve apenas à manutenção da dinâmica violenta da exclusão e não promove uma verdadeira transformação da consciência. De outra feita, poderia acenar para uma possibilidade de mudança se a projeção do conteúdo ameaçador feita no outro pudesse ser integrada na consciência gerando uma transgressão necessária ao status quo.

 

“A universalização dos duplos e o desaparecimento completo das diferenças, que exacerba os ódios mas torna-os perfeitamente intercambiáveis, constitui a condição necessária e suficiente para a unanimidade violenta. Para que a ordem possa renascer, é preciso inicialmente que a desordem chegue ao extremo; para que os mitos possam se recompor, é preciso inicialmente que eles sejam inteiramente decompostos.” ( Girard, 2008, p. 105)

 

Considerando a tese de Girard e o conceito de função transcendente de Jung, podemos afirmar que há uma energia estruturante na rivalidade: a busca humana de reconexão com o sagrado e o si mesmo. Essa energia estruturante estaria presente nos mitos, nos ritos e em toda religiosidade na forma do mecanismo do duplo que se sustenta através do desejo mimético, o desejo de fusão com o outro. E sendo a rivalidade a luta entre a oposição e o desejo de unidade entre contrários arquetípicos nos perguntamos: pode a rivalidade um dos motores da violência ser saciada se o outro é aquele que compete comigo no trabalho, no curso, na própria família, na vida social? Como interromper o ciclo de vingança restaurando a tolerância e a amizade entre rivais? Como deixar a competição um pouco de lado em um mundo que vive uma realidade tão competitiva? Difícil tarefa humana e dos profissionais que trabalham com mediação de conflitos.

  Os processos de mediação entre vítimas e agressores introduzem um terceiro, um sacrifício ritual: o sacrifício do desejo de vingança que instala a possibilidade do perdão. As negociações entre vítimas e agressores envolvem o trabalho com a dialética entre a vontade do ego, a demanda mais íntima do self e o outro. O problema deve se deslocar do tema da culpabilidade do agressor pelo seu ato para se lançar o foco da atenção ao tema simbólico da vítima não vingada. Como assinala Maria Rita Khel ( Khel, 2004, p. 137), “o ressentimento funciona para encobrir a divisão do sujeito.” O motivo da disputa deverá ser sacrificado. Só através desse sacrifício simbólico do motivo da disputa, poderá renascer a presença de Eros na relação entre os rivais. O escolhido e idealizado na amizade é também o mote da disputa.

Para Nietzsche, o homem ressentido é aquele que deixou de agir seu desejo de reação à ofensa recebida. O ressentido triunfa apenas na fantasia a realização do seu desejo de vingança.  A memória do agravo sofrido triunfa sobre a força de re- ação. O ressentimento poderia ser então a sombra da rivalidade na perspectiva da psicologia Junguiana ou, seja, a rivalidade que deixou de ser agida. O que é negado é o motivo idealizado da própria felicidade que é também o da própria infelicidade. Há um certo nihilismo, negação do sentido e do valor em si da experiência, da dimensão trágica do viver. ( Deleuze, Nietzsche e a Filosofia)

O homem ressentido deixando de agir, considerasse merecedor dos benefícios das ações que não executou. Não age sua rivalidade e seu desejo de conquista. Não consegue escapar ao ciclo de frustração e vingança.

 

    Sobre a amizade

 

As negociações entre vítimas e agressores nos lançam nos paradoxos: amizade versus rivalidade e tolerância versus intolerância.

Otavio Paz ao refletir sobre o amor e a amizade (Paz, 2009, p. 112) nos lembra que “muitas vezes se comparou a amizade com o amor, em ocasiões como paixões complementares e em outras, como opostas. […] A escolha e a exclusividade são condições que a amizade compartilha com o amor. De outro modo, podemos estar enamorados por uma pessoa que não nos ame mas a amizade sem reciprocidade é impossível.”

Algumas outras diferenças entre amor e amizade são apontadas.   O amor nasce de uma atração física e espiritual por outra pessoa, enquanto a amizade requer “afinidade de idéias, os sentimentos ou as inclinações.” Dessas identificações emerge a simpatia que com a convivência vem a se transformar em amizade. “O amor é instantâneo; a amizade requer tempo”, diz Otávio Paz. (op. cit., p. 113) Otávio Paz ao se referir ao amor como instantâneo parece fundir a idéia de amor ao tema da paixão. Assim como a amizade o amor exige investimento e dedicação para sua manutenção, o zelo requerido ao cultivo de toda virtude  já apontado por Aristóteles. Na Grécia antiga, Aristóteles conceituou a amizade como uma virtude, havendo três tipos de amizade: “por interesse ou utilidade, por prazer, e a amizade perfeita que ocorre entre homens de virtude porque estes “se desejam igualmente o bem.” Enquanto a amizade foi incluída pelo filósofo entre as virtudes, a rivalidade se inclui entre as paixões humanas. (op. cit, p. 114)                     

Cristiano Viano (Viano, 2008) investiga a origem da paixão de rivalidade em Aristóteles e se “há na alma um ponto de origem comum para estas paixões aparentemente contraditórias, provenientes, de um lado, da amizade e, de outro, da rivalidade?” A dialética das interferências entre amizade e rivalidade podem nos conduzir a uma reflexão sobre a amizade.

Diz o autor:

“Em Aristóteles o sentimento de amizade interage frequentemente de modo surpreendente com as emoções competitivas como a cólera (orgê), a emulação (zêlos), e a rivalidade propriamente dita (philotimia), emoções que, como se pode constatar sobretudo na Retórica, constituem um dos pilares essenciais nas relações humanas.” ( Viano, C, 2008 p. 1)

 

Aristóteles, em Ética a Nicomâno define a amizade como atividade e aperfeiçoamento recíproco.  

 

“A amizade perfeita é dos bons e semelhantes por virtude…: São de ânimo semelhante por si mesmos e não por circunstâncias externas; permanece, pois a sua amizade enquanto permanecem bons, e a virtude é duradoura ( Aristóteles Et.nic., VIII, 3, 1156) […]  Amigo é quem deseja e pratica o bem ( ou que tal lhe pareça) por amor do amigo, e deseja que o amigo viva e se conserve por si mesmo; que é o sentimento das mães para com os filhos e dos amigos ainda nas divergências ( Et.nic., IX, 4, 1 166) . Quem fez o bem prefere e ama a quem o recebeu, embora não possa ele ser ou chegar a ser depois de alguma utilidade. O mesmo acontece também aos artistas: pois cada um ama a própria obra, mais do que é amado por sua criatura, se se transformar em animada….A causa disso é que, para todos, o ser é objeto de desejo e amor, e nós estamos  na ação: no viver e no agir. Na ação existe, de certo modo, quem realiza a obra; e ama a obra porque também ama o ser. Isto é natural: porque o que está em potencial, isto a obra exprime em ação ( IX, 7, 1 167)  ( Aristóteles apud  Mondolfo, 1973, p. 62)

 

Para Aristóteles a prova da existência da amizade está na ação e envolve uma prática de potenciais da alma. [1] Envolve também um desapego em relação ao bem dirigido ao outro e a generosidade. A idéia de um “ânimo semelhante” que envolve os amigos aponta para uma simpatia anterior a qualquer projeto comum.  As provas da existência da amizade são as ações praticadas na direção do outro e a medida ou proporção na vivência e intensidade das paixões nela envolvidas. Sendo uma virtude, constrói-se a partir da atitude que se tem em relação às paixões. Segundo o filósofo, “[…] a respeito das emoções da rivalidade […] podem ser reconduzidas à emoção fundamental que é o desejo de superioridade ( huperochê), assim como todas as formas de afeição dependem em última instância do amor de si (philautia). O que importa na ética Aristotélica é a medida na vivência das paixões que só se torna possível a partir do amor de si. (Aristóteles, Ética Nicomaquéia II 4 1105b19 apud Viano (Viano, 2008, p. 14)

Cito:

“Compreende-se, então que a ética aristotélica não é uma ética do altruísmo nem do egoísmo radicais. Trata-se antes de um individualismo moderado, do homem animal social, que contém analìticamente em sua própria natureza a amizade por seus semelhantes. As relações estreitas entre rivalidade e afeição sublinham de maneira evidente este aspecto fundamental da noção aristotélica de amizade.” ( Viano, 2008, p.15)

 

O tema da amizade nos lança também em uma reflexão sobre a identidade pessoal. Enrico Berti (Berti, 2011), filósofo, reflete sobre esse tema:

 

“Em Aristóteles existe o conceito, senão da identidade pessoal, ao menos da identidade própria […] quer dizer, si mesmo. Este “si mesmo” é objeto não só de auto-consciência, mas também, quando está presente a virtude, ou seja, a coerência consigo mesmo, de autoconcordância, de autoadesão […] Para Aristóteles, “o homem virtuoso concorda consigo mesmo.”( Berti, E., 2011, p. 205)

 

Enrico Berti analisa que a autoadesão, a concordância e consonância do indivíduo com ele mesmo é uma forma de amizade consigo mesmo e que é depois ampliada para as relações de amizades com os outros.

Cito Aristóteles:

“É porque o virtuoso sente por si mesmo cada um desses sentimentos, e porque os sente pelo amigo como por si mesmo (o amigo, de fato, é outro si mesmo) que se pensa que a amizade é um sentimento deles, ou seja, que os amigos são aqueles que sentem esses sentimentos.” (Aristóteles apud Berti, ibid, 206).

 

  A noção de identidade pessoal aqui presente se refere a uma individualidade separada, porém, há uma identidade entre a relação consigo mesmo e a relação com o amigo, a qual não elimina a distinção entre os dois sujeitos e a consciência da identidade diferente de cada um.” (Berti, ibid, p. 206)   É a possibilidade do amor por si mesmo, ou seja, a boa auto-estima que possibilita a extensão desse sentimento de estima ao outro. A simpatia, a intimidade e a comunhão das vontades são substrato da amizade. Mas isso não implica no desaparecimento do sujeito que se constitui a partir da consciência da própria existência e da existência do outro. Para Aristóteles o sujeito não se reduz à sua função. O caráter substancial do sujeito é o seu élan vital, sua alma, potência para o movimento e a ação, que garante a identidade própria para além dos limites da consciência. O que se mantém é a necessidade da diferenciação e distinção entre si e o outro, mesmo que o amigo seja experimentado como outro si mesmo pelo sujeito.

O pensamento de Aristóteles é fundamento para algumas das reflexões de Montaigne sobre a amizade, ora vista como um dos princípios da natureza e do cosmos, princípio arquetípico para estabelecer associações, ora como resultado da ação e da ética humanas. A partir de sua amizade com o companheiro La Boètie, que perdera por morte Montaigne reflete sobre os ingredientes da amizade especial que teve com seu amigo e a diferencia de outros tipos de amizade, segundo ele, “menos belas e nobres na medida em que misturam à amizade outra causa, objetivo e fruto que não ela mesma.” (Montaigne,2002, p.275). Nesse sentido o que une na amizade é a comunhão das intenções e das vontades e não uma identidade das ações ou um interesse particular. Separa a amizade ideal da que resulta da obrigação natural e da que é fundada na  lei como acontece na relação entre pais e filhos e entre irmãos. Na relação entre irmãos ressalta que por compartilharem bens, vivem o dilema das partilhas onde a riqueza de um pode implicar na pobreza do outro, o que […] destempera estranhamente e afrouxa esse amálgama fraternal.” (Montaigne, op.cit. p. 276). Uma associação focando apenas um interesse comum, a princípio pode ser apenas mantida pela disputa do objeto desejado, faltando uma maior cumplicidade dos parceiros. Caberia à amizade verdadeira o livre- arbítrio, a escolha mútua. Separa também a amizade do amor-paixão que tem o desejo de possuir o objeto de afeição. A amizade é serena e se caracteriza pela concordância das vontades e generosidade. É também fruto da maturidade.  Requer o sentido pleno da alteridade que se acompanha do reconhecimento mútuo das vontades, intenções e julgamentos. Envolve também cumplicidade para além de um interesse material ou obrigação.

Sérgio Cardoso (Cardoso [et all] – 2006) retoma Montaigne e Aristóteles para falar da amizade como espaço de auto-conhecimento. Porém, discute os limites desse espaço e salienta que “mesmo as virtudes […] tem sempre algum limite que não podem ultrapassar. […] E só a ação voluntária e racional da alma empresta ordem às tumultuadas paixões e refaz a hierarquia dos fins.” Montaigne ao falar de sua amizade pelo amigo Bòetie, desfila o estatuto de todas as formas de philia, que se refere nos antigos a todas as formas de “afinidade entre os seres e de suas associações.” Cardoso, op. Cit, p.165). Em alguns momentos Montaigne parece falar do amor- paixão ao falar de sua amizade.

 

“Nossas almas viajaram tão unidamente juntas, examinaram-se com tão ardente afeição, e com a mesma afeição descobriram-se até as mais profundas entranhas uma da outra, que não apenas eu conhecia a sua como se fosse minha mas indiscutivelmente me confiaria a ele de melhor grado do que a mim mesmo.” ( Montaigne, Os Ensaios, livro I,  28, p.283).

 

 

A amizade pressupõe comunhão de anseios e vontades e coloca o sujeito diante de um paradoxo: o do sentido versus absurdo[2] presente na idéia de uma conjunção plena das almas em meio há um mundo de contradições, diferenças e em constante transformação. Cardoso aponta a dicotomia entre a idéia da amizade como penhor da identidade e como desejo narcísico de fusão e completude com o outro a quem estamos ligados por um sentimento de afeição. Resultado da práxis do ser humano, assim como considerava Aristóteles, o vínculo de amizade resulta do exercício virtuoso da paixão e não de uma dissociação entre razão e sentimento ou entre paixão e virtude. Para Aristóteles deve-se aplicar a medida às paixões e não reprimi-las.

A rivalidade inclui-se dessa forma como um dos elementos passionais da amizade e como tal não necessàriamente patológico. Nosso rival é a própria vida, a busca do significado que acompanha todo processo de viver.   O paradoxo sentido e absurdo acompanha a existência humana desde o momento em que se interrompe o estado ideal de fusão primordial ao nascer e instala-se o sentido de incompletude e de falta. Se você ama alguém, se tem um amigo é porque venceu o medo em relação à própria vida. A possibilidade da afeição pelo outro, de um ideal maior que não apenas o amor de si mesmo pode atenuar o sentimento de rivalidade frente à disputa pela posse e domínio de um mesmo objeto: a felicidade humana.  A presença de um terceiro, um símbolo amoroso que opera uma função transcendente, possibilita o sacrifício do desejo de domínio. Submete -se o antigo sentido a uma nova leitura. “O amigo, diz Zaratustra, é sempre um terceiro entre mim e eu que me força a superar e a ser superado para viver. (Nietzsche apud Deleuze, op. cit. p. 12) Esse sacrifício deverá fazer renascer um sentido de comunhão perdido com o outro, a vida e o cosmos, de um sentido de solidariedade que possibilita a tolerância.

 

“É preciso honrar no amigo o inimigo. Pode aproximar-se do seu amigo sem passar para o seu grupo?” (Nietzsche, op. cit. p. 43)

“É escravo? Então não pode ser amigo.

É tirano? Então não pode ser amigo.

[…] Assim falava Zaratustra. (Nietzsche op. cit.p. 44)

 

“Nascer de novo

Carlos Drummond de Andrade

 

Nascer: findou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma, no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.

Sondamos, inquirimos
sem resposta:
nada se ajusta, deste lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?

Eis que um segundo nascimento,
não adivinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta de sentido
no absurdo de existir.
O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.

A explicação rompe as nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
não sou eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa. ( Carlos Drummond de Andrade A paixão medida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980).

 

Referências Bibliográficas:

Berti, Enrico. Novos Estudos Aristotélicos II- Edições Loyola- São Paulo, 2011.

Cardoso, Sérgio. Paixão da Igualdade, paixão da liberdade: A amizade em Montaigne in Os Sentidos da Paixão/ Sérgio Cardoso- [et al]- São Paulo, Companhia das letras, 2006.

Comte- Sponville- Pequeno Tratado das Grandes virtudes-Martins Fontes- São Paulo, 2002..

Gilles Deleuze- Nietzsche e a Filosofia, tradução de Antonio M. Magalhães, Editora Rés Ltda 4000 Porto-Portugal.

Girard, René. A Violência e o Sagrado, Paz e Terra S.A. – São Paulo – 2008.

Mondolfo, Rodolfo. O Pensamento Antigo : Histótia da Filosofia Greco- Romana II- Desde Aristóteles até os Romanos- Editora Mestre Jou- São Paulo, 1973.

Montaigne Michel. Os Ensaios- Livro I – Martins fontes São Paulo, 2002.

Nietzsche William Friedrich. Assim falava Zaratrusta.Hemus Editora ltda- São Paulo- Brasil.

Paz, Octavio. La Llama Doble- Amor y Erotismo – Editorial Seix Barral, S.A. – Barcelona- 2009.

Da Silva Junior, Romão Inácio. Murilo Rubião: Enlaces eróticos , fantásticos e absurdos. Dissertação de mestrado em letras- Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal,RN, 2006 http://bdtd.bczm.ufrn.br/tedesimplificado/tde_arquivos/20/TDE-2008-01-28T023249Z-1027/Publico/RomaoISJ.pdf Consulta feita dia 30 de junho de 2012.

Viano, Cristina Amizade e emoções de rivalidade em Aristóteles- Journal of Ancient Philosophy Vol II Issue I p 1- 15, Paris, CNRS- 2008.

 

 

 

1

 


[1] Segundo Enrico Berti ( Berti, 2011, p.201) para Aristóteles a alma não é a espécie, mas precisamente o princípio vital do indivíduo, e é individual como este último. Aristóteles diz também que ela é o ato, porque na sua concepção como se sabe, a matéria é potência, ao passo que a forma é ato.              

[2]A palavra absurdo deriva do Latim, absurdus (de surdus = surdo) e que significa discordante. Os seus significados comum e filosófico é muito próximo: enquanto o seu significado comum aponta para algo que é contrário ao senso-comum, a filosofia refere o absurdo como algo que não tem sentido, isto é, sem valor de verdade. Já a lógica atribui ao termo absurdo, o significado de algo que contém uma contradição. De acordo com o existencialismo, o próprio mundo é absurdo, visto não ter sentido.

É com Schopenhauer, no séc. XIX, que o conceito de absurdo é trazido para a discussão filosófica. Para Schopenhauer, a própria vida é um absurdo, na medida em que não tem outra razão de ser para além de um “querer viver” sem sentido. É esta tomada de consciência de como a vida e o mundo é absurdo que, na sua opinião, justifica o pessimismo e o desprendimento. Pelo contrário, Camus, considera que a tomada de consciência da absurdidade do mundo deve conduzir à acção e à revolta e à recusa da passividade. Também Sartre e o existencialismo, se o mundo não tem sentido e se não nos é dado, então é porque deve ser construído. Assim, o pessimismo e a angústia sentidos perante o absurdo não estão relacionados com a ausência de sentido da vida e do mundo.

 http://www.knoow.net/ciencsociaishuman/filosofia/absurdo.htm#vermais . Consulta feita em 29/07/2012 ãs 10: 46hs.